PAS055. O Corvo

A cidade estava envolvida pela noite. As casas eram sombras projetadas na escuridão dum inverno que passava tempestuoso e rebelde. O solo, revolvido e enlameado por chuvas recentes, tinha brilho cinzento e mostrava-se quase intransponível.
Uma única luz, composta por grosseira lanterna colocada sobre os batentes da porta do «saloon», deixava que se divisasse a pequena distância um tosco letreiro em madeira, onde se lia em carateres deformados as seguintes palavras: «White City».
Junto a essa indicação territorial, movia-se um indivíduo envolto em ampla capa negra, que procurava abafar os menores ruídos, mesmo aqueles causados pelo chapinhar das botas na lama líquida. Tinha o rosto e a cabeça ocultos sob um capuz estranho, que mostrava unicamente uns olhos grandes, repletos de audácia e energia.
Os movimentos cautelosos, felinos, encaminhavam-no no sentido de uma pequena habitação, situada na vertical do «saloon». Quando atingiu a porta, bateu levemente com os nós dos dedos e esperou. Os segundos passaram e, como resposta à sua chamada, ficara, simplesmente, o ténue repercutir das pancadas.
Resoluto, fez desandar o fecho e penetrou numa sala onde predominava o cheiro a gordura derretida. Parou a poucos passos da entrada e tentou observar o que se passava para além das trevas.
Subitamente, teve a sensação da presença de mais alguém. Susteve a respiração e os olhos, agora, duplicavam o esforço de descobrir tudo quanto o rodeava.
Isso não evitou, porém, que um vulto traiçoeiro se aproximasse pelas suas costas, e que, lentamente, com precisão, lhe vibrasse um violento golpe na nuca, que o prostrou redondamente no soalho…
**
Um «cow-boy» entrou, de roldão, no escritório do xerife e com grandes gestos começou a gritar:
- Mc Dawson! Mc Dawson!
O interpelado surgiu no limiar da porta que comunicava com a sala das prisões e teve uma careta de preocupação.
- Que se passa? – perguntou.
- Mataram Dungan! – respondeu o outro mal contendo o próprio alvoroço das palavras.
O xerife teve um esgar de surpresa e, em dois pulos, atingiu o varandim da entrada.
Deparou, imediatamente, com um grupo de homens que rodeava a pequena habitação de Dungan, alguns dos quais, em gestos pouco tranquilizadores, barafustavam em altos berros.
Mc Dawson aproximou-se e, vencendo a resistência do amontoado, conseguiu entrar na sala. A um canto, o velho Dungan, estendido a todo o comprimento do corpo, mostrava sinais de quem abandonara a vida; ao centro, inanimado, um homem que vestia um traje pouco comum: um capuz negro, uma capa negra, uma blusa negra, umas calças negras, umas botas negras – tudo negro.
O xerife, que obrigara os curiosos a deixar a sala, ficara acompanhado do juiz da cidade, o rancheiro Sellis. Ambos fitavam o singular personagem e, animados pela mesma ideia, curvaram-se e viraram o corpo inerte. Só então viram que tinha as feições cobertas e que, na blusa, no meio dum círculo, apresentava o desenho estilizado dum corvo.
Intrigados, procuraram retirar o capuz, mas, nesse instante, o misterioso desconhecido esboçou os primeiros sintomas de vida.
Logo as duas autoridades se endireitaram, para aguardar que o homem voltasse a si do desmaio. Este, pouco depois, sentava-se e levava as mãos à cabeça, a tentar acalmar qualquer espécie de dor. Mas os olhos, despertos da imobilização involuntária, voltaram a girar nas órbitas, e tiveram um brilho de inteligência, como se compreendessem instantaneamente a cena que os rodeava.
O mascarado levantou-se com lentidão e reparou no corpo de Dungan. O xerife reparou que os seus punhos se fecharam com desespero. Aproveitando essa reação, o representante da lei exclamou:
- Considere-se preso! Motivo: assassínio.
Uma nuvem desceu no olhar do mascarado e uma gargalhada de escárnio ressoou sob o tecido do capuz.
-Preso!? – disse com voz metálica, sonora e ríspida. – Parece-lhe, xerife, que depois de praticar semelhante acto, ficaria aqui à sua espera? Há de convir que é pouco lógico…
O juiz, que ouviu a resposta, teve um sorriso.
- Porque, antes de falar, não tira essa máscara?
Outra gargalhada e o embuçado retorquiu:
- Não seja curioso, meu caro senhor. Lembre-se que é um defeito pouco natural num juiz…
Mc Dawson, já aborrecido com o diálogo, sacou o «colt» e ordenou:
- Acompanhe-nos! Vai responder por este crime! E trate de tirar o capuz, antes…
A última palavra desapareceu com o eco. Um pontapé violento na mão, dado de improviso, arrebatara-lhe a arma dos dedos, enquanto um punho fechado, com a força dum ariete, lhe  martelava o queixo. Quanto ao rancheiro, só teve tempo, tal a rapidez dos acontecimentos, de assistir, com cara pouco digna, ao desaparecer do mascarado, em correria vertiginosa, por entre a multidão de «cow-boys» estacionada em frente da habitação.
Minutos depois, o bater duro cascos dum cavalo na estrada, anunciava a fuga do desconhecido…
Mc Dawson, o xerife, logo que se recompôs do soco, em gritos, ordenou a perseguição. E quando, acompanhado de Silles, se preparava para sair, um objeto brilhante, caído na soleira da porta, chamou-lhe a atenção. Baixou-se, apanhou-o, verificou que era de prata e tinha o feitio de um «C» maiúsculo. Olhou para o xerife e sem nada dizerem, compreenderam que foram senhores da mesma ideia: o corvo que o mascarado ostentava na blusa!
Não acrescentaram nada e correram para os cavalos. Não tardou que numeroso grupo de homens atravessasse a povoação, no encalce daquele personagem com caraterísticas irreais.
Quando atingiram a planície, o xerife gritou de satisfação: lá longe, o mascarado, que montava um belo cavalo branco, atravessava um pequeno ribeiro, ao alcance das armas…



A seguir: A estranha fuga do mascarado

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