PAS387. Um «cow-boy» que domava cães

Charly acabava de fazer um cigarro e acendeu-o. Foi ao levantar a cara para lançar uma nuvem de fumo, que reparou nos cães.
Na carruagem havia dois soberbos mastins cruzados de lobo. Ali estavam com o seu corpo macio e gordo, peito largo, e pelo comprido e macio, e umas patas magníficas. Tinham a boca entreaberta, um bocado de língua de fora, que estremecia, como uma bandeira flutuando. Os seus olhos húmidos, cheios de luz, olhavam um pouco adormecidos, ausentes.
Ali estava a armadilha do azar que Charly não soube ver. O Destino tinha jogado limpo. Tinha-lhe dado dois avisos. Sabia o que tinha acontecido ao «Patas». Não ignorava o que sucedeu a um tal Karker.
Também podia ser que o azar lhe tivesse dado o incentivo do perigo para que Charly se sentisse tentado a provar a sorte. Na realidade, ele conhecia demasiado os cães para saber como devia atuar. Mas o que Row lhe disse depois: «E aos seres de duas «patas», conhece-los bastante?»
Quando Garner se aproximou do «buggy», deteve-se, e sem vacilar, estendeu uma mão e aproximou-a da cabeça dum dos mastins. Alguém gritou detrás deles:
— Cuidado!
Mas Charly continuou avançando a mão, com segurança, enquanto murmurava:
— Olá, amigos! Belos! Belos!
Tocou a cabeça do primeiro. A língua desapareceu, e a boca ficou fechada. Os olhos adormecidos avivaram-se. Os dedos de Garner começaram a fazer cócegas no alto da cabeça, e os olhos começaram a fechar-se de novo.
Já tinha um. E ia a passar ao outro, quando no portal do estabelecimento que tinha nas costas ouviu-se uma voz juvenil, cheia de irritação:
— Que significa isto?
Charly não se voltou. Alcançou a cabeça do segundo cão, sempre murmurando:
— Olá, olá, amigo! Olá! Belo!
Também este fechou os olhos e ficou quieto. Na rua ouviram-se alguns murmúrios. De novo, soou a voz irritada e jovem:
— Depois serão as lamentações!... «Turck»! Chick»!
Neste momento, Charly andou depressa. Adivinhou que um ser pertencente ao género dos que se apoiavam em duas extremidades ia sobrelevar os que se apoiavam em quatro. Gritou de novo os dois nomes, e levantando mais a voz, dando-lhe um tom alegre, exclamou:
—  «Turck»! «Chick»! Olá! Olá!
Detrás de Charly ouviu-se o barulho duns dedos. E a voz irritada chegou ao cúmulo da fúria:
— A ele!
Voz que apenas se ouviu e que perdeu todo o seu ar de ordem severa porque Garner tinha-se posto a rir estrondosamente, sem cessar de chamar os cães. Estes tinham voltado a cabeça. Por um momento pareceu que iam saltar sobre Garner. Mas este continuava com a mão ao pé deles, procurando com os seus risos e vozes de afeto tirar a seriedade à cena.
Ao mesmo tempo, rápido, com o braço que ficava livre, procurou por trás dele. Sabia que não falharia. Não ignorava que o ser irritado estava próximo. Tinha incluso chegado a sentir o seu bafo na nuca.
Acertou ao agarrar um pulso, e agarrou com toda a sua força. Ouviu-se um gemido, mas ele continuou apertando, sem cessar de gritar:
— «Chick»! Turck»! Bons amigos! Bons amigos! Ria constantemente.
E foi rindo que disse:
— Maldita bruxa! Partir-lhe-ei o braço se os atiça!
Apertava sem lástima, disposto a cumprir a sua ameaça. Sentiu contra as suas costas chocar um corpo vacilante, que se retorcia de dor. Os mastins ergueram á cabeça, puseram-se nas quatro patas, e os seus olhos cintilaram.
Os murmúrios em volta aumentaram, com ar de terror. Charly sentia atrás dele o ser irritado debater-se desesperadamente, e adivinhou que dum momento ao outro, os seus gritos iam sobrepor-se aos dele. Puxou com força, e o ser que detinha detrás passou para a frente, como um raio. Uma melena de cabelo castanho, deliciosamente perfumada, roçou a sua cara. Viu um pescoço delicado, de pele morena...
— Ria-se ou estrangulo-a!...
Parecia que o faria na realidade. Com ambas as mãos apertava o pescoço. Os mastins, como que cheios de eletricidade tremiam. Um grunhido agoirento e uns ferozes ladridos ficaram no ar. Alguém, de pronúncia corretíssima, tão perfeita que quase resultava cómica, exclamou:
— Menina Keyes! Detenha-os!
Em seguida ouviram-se outras vozes. Talvez fosse isso, mais que a ameaça de Charly, o que decidiu a jovem a dizer:
--Quietos!...
Não obstante, Charly continuou tendo-a como escudo.
— Diga-lhes mais coisas! Fale com eles! Merecem ouvir a sua preciosa voz!
— «Turck»! «Chick»!... Quietos aí I...
A voz da rapariga soava rouca. Talvez por isso os cães não se decidiram a obedecer. Mas pareciam ter perdido muito da sua preciosa atitude. Pouco a pouco foram-se tranquilizando, e, por fim, ficaram sentados.
— Está bem... Depois todos são testemunhas de que os cães não foram culpados — comentou Garner, afastando as mãos do pescoço da rapariga.
Esta voltou-se, rápida. E Garner pensou ver um relâmpago verde. Dois olhos imensos, dum verde brilhante, que quase feriam, olhavam-no como se quisessem apunhalá-lo. Uma mão crispada levantou-se, disposta a bater-lhe na cara. No «buggy» levantou-se um grunhido. Charly voltou a segurar o punho.
— Advirto que não sou o «Patas». Se me tocam os seus cães...!
Agora a voz de Garner era ainda mais rouca que a dela. A rapariga retrocedeu um passo. E nesse instante algo estalou no ar é Charly sentiu uma forte escoriação numa das suas maçãs do rosto, ao mesmo tempo que algo se lhe enrolava ao pescoço.

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