PAS429. Um relincho na noite escura
Esmorecia a tarde. Para as bandas do Oeste, atrás do Baboquivari Peak, acabava de se esconder o sol. A ténue obscuridade do crepúsculo, que ia aumentando sem cessar, depressa se transformaria num tenebroso manto de sombras que envolveria, durante algum tempo, dissimulando-a, a desoladora monotonia da paisagem.
Um pouco mais tarde despontaria a lua e o firmamento povoar-se-ia de milhões de estrelas cintilantes.
Os sons propagar-se-iam com maior nitidez. Um ou outro dos animais que povoavam aquelas solidões daria sinais de vida no seu noturno vagar, para procurar alguma presa. Os catos e as «choyas» (1) projetariam as suas sombras na areia, como que num intento de animar um tanto a paisagem, povoando-a de espectros fantasmagóricos.
E, contudo...
Nada daquilo diminuiria a avassaladora solidão. A não ser, talvez, fazer ressaltar com maior intensidade do que nunca a grandiosa imensidade dos mistérios da Natureza.
Porque o deserto continuaria a ser o mesmo.
Ali, naquelas paisagens de desolação e morte, não se podia pensar outra coisa. Ainda que, por vezes...
O cavaleiro que avançava para o Norte, esquadrinhando, sem cessar, o terreno que o rodeava, parecia estar acostumado àquele ambiente. Conduzia o cavalo com pulso firme e seguro sem mostrar a menor hesitação.
Não parecia ser a primeira vez que atravessava um deserto. Mais do que um caminhante aventuroso e decidido, parecia um perseguidor.
E assim era com efeito.
O cavaleiro havia saído de Tubac três dias antes. Não hesitara um momento em se embrenhar no deserto de Gila. Tinha a convicção de que, mais tarde ou mais cedo, alcançaria o objetivo que o obrigara a entrar ali.
Travemos contacto com ele no, momento em que, ao ocultar-se o sol por detrás do afastado cume do Baboquivari Peak, deteve a sua montada numa pequena elevação arenosa.
Permaneceu imóvel, na sela, durante uns segundos, olhando, como sempre, em frente. E, de súbito...
Procedente de algum local que não ficava muito longe daquele onde se encontrava, chegou-lhe aos ouvidos o inconfundível relincho de um cavalo.
Qualquer coisa semelhante a um sorriso apareceu no rosto do cavaleiro.
Mas a escuridão, que havia momentos começara a invadir o local, tornava impossível distinguir-se se era, de alegria ou de inquietação a sua causa.
As suas pupilas penetrantes mergulharam nas sombras que tinham principiado a envolvê-lo. À sua frente apenas distinguia os vultos de alguns catos, com os seus longos braços.
Esperou ouvir, de novo, o mesmo relincho de há pouco, mas foi inútil.
— Tanto faz, «Bailarino» — monologou em voz baixa. — De qualquer forma, hei-de encontrar-te.
De um dos bolsos da samarra que envergava, tirou qualquer coisa que meteu na boca da sua cavalgadura. Não eram mais do que umas pedritas de sal, para evitar que o animal respondesse aos relinchos do outro cavalo.
E novamente se pôs em marcha.
Caminhava assim, quase às escuras já, confiado apenas no seu instinto de orientação.
A diferença estava em que o fazia agora com deliberada lentidão, observando, à sua volta, o menor desta, lhe do terreno que percorria.
Decorrera quase um quarto de hora depois que abandonara o outeiro, e, de súbito...
A sua mão direita acariciou o pescoço do animal que montava. Seguidamente pronunciou umas palavras em voz baixa e logo parando junto de um enorme cato prendeu ali o cavalo.
O cavaleiro, caminhando agora a pé, torceu um pouco para a esquerda. Avançou silencioso até chegar a umas três jardas de distância de um aglomerado, de «choyas», e...
Bruscamente saltou para diante. Uma mão férrea segurou as rédeas do cavalo que se encontrava preso ali e a outra, empunhando um revólver de seis tiros, apontou ameaçadoramente para a figura que, estendida no solo, se via a seu lado. Depois...
— Acabou-se o passeio, amigo — articulou com voz fria e autoritária. — Levante as mãos ou furá-lo-ei como um passador! Não admito truques de espécie alguma!
Ao som da sua voz, o vulto daquele que se encontrava estendido no solo deu um estremeção de sobressalto. Ao contrário, o cavalo que acabava de segurar, depois de arrebitar as orelhas, pareceu sossegar completamente.
— Fez mau negócio, roubando-me o cavalo, amigo — continuou a fazer-se ouvir a voz do que empunhava o revólver. — Quem quer que monte o «Bailarino» sem minha autorização, está condenado a morrer... Vamos! Levante-se imediatamente e dê uns passos até aqui! Quero ver-lhe a cara, antes de o enviar para o inferna!
O homem já não sujeitava o cavalo, mas continuava a seu lado, enquanto o seu revólver se agitava significativamente, apontando ao vulto, do, sem dúvida, surpreendido dorminhoco.
— É mau roubar um cavalo, por estas terras, amigo — e a voz do que sustinha o revólver ressumava ironia. — Mas roubar o «Bailarino» isso é uni suicídio. Julgou, por acaso, poder escapar-se ao meu castigo por se ter embrenhado neste deserto?... Vamos! Venha até aqui e responda! Mas sem baixar os braços, hem?
O vulto, que se adivinhava sentado no solo, moveu-se com dificuldade. Não era, na verdade, fácil levantar-se tendo os braços levantados. Por fim conseguiu-o.
Apesar da escuridão, o que tinha o revólver pôde verificar que se tratava de uma pessoa de pouca envergadura física. As calças pareciam estar-lhe demasiado grandes. O mesmo acontecia com a jaqueta que envergava. E quanto ao chapéu, preso ao pescoço com uma fina correia, ainda que não o tivesse posto, era tão grande que as suas abas, aparecendo atrás e sobre a cabeça, convertiam numa sombra a parte do corpo assente sobre os ombros.
Mas bastou apenas um segundo para que o do revólver encontrasse uma explicação de tudo ao identificar a espécie de inimigo com que tinha de haver-se.
Dos lábios daquele que tinha os braços ao alto acabavam de brotar as seguintes palavras:
— Não, era minha intenção roubar-lhe o seu cavalo, senhor. Pensava devolver-lho, juntamente com uma quantia, como indemnização, apenas tivesse chegado a Tucson.
Naturalmente não foram as palavras em si o que fizeram soltar ao do revólver uma exclamação de surpresa. É que...
A voz que acabava de ouvir pertencia a uma mulher.
— Maldição! — exclamou, enquanto guardava a arma. — Tenho ganas de morrer de vergonha. Uma mulher! Foi uma mulher que me roubou o cavalo!
— Repito que não lho roubei — ouviu que lhe respondiam, ao mesmo tempo que quem falava baixava os braços que até então mantivera ao alto. — Ainda que reconheça que lhe sobram razões para assim, pensar, a verdade é bem diferente. Convencer-se-ia disso dentro de alguns dias.
O homem avançou uns passos até àquela diminuta figura que lhe falava.
Mas de nada lhe serviu. A escuridão era tão profunda que não podia distinguir senão o vulto da sua interlocutora.
— Sente-se onde estava — ordenou, enquanto retrocedia com ela até alcançar a proteção das «choyas». — Acho que assim, às escuras, não deverá falar. Não posso ler-lhe nos olhos se pretende enganar-me. Para começar vou oferecer-lhe uma oportunidade de demonstrar que é sincera.
— Que espécie de oportunidade? — a voz da rapariga, agora mais tranquila e menos preocupada, tinha um timbre agradável e argentino.
— Vou buscar o cavalo que tive de comprar por sua culpa. Não tem comparação com «Bailarino», mas é um bom animal — disse, afastando-se.
Regressou pouco depois, montando o cavalo que deixara preso ao cato. E, ao apear-se, ouviu dizerem-lhe:
— Já se convenceu da minha sinceridade? Se quisesse teria podido escapar, montada no «Bailarino».
A escuridão impediu-a de ver o sorriso esboçado pelos lábios do seu companheiro ocasional.
— Engana-se, minha senhora — respondeu. -- Agora seria muito diferente de noite em que me levou o «Bailarino» de Tubac. Mal o tivesse montado, o próprio cavalo a conduziria à minha presença. Posso, inclusivamente, assegurar-lhe que, se o tivesse desejado, teria, podido reavê-lo sem ter tido necessidade de vir até aqui. Recorda-se quando ele relinchou, haverá coisa de meia hora? Nada mais teria sido necessária para o obrigar a regressar junta de mim, senão, chamá-lo. Não o fiz porque queria também apanhar o ladrão. Agradeça a esse facto o não se encontrar agora neste deserto sem montada e condenada a sofrer a pior das mortes.
No silêncio que, se seguiu ele pôde perceber claramente o suspiro que a rapariga deixava escapar. Logo…
— Quer que lhe explique a razão por que lhe levei o cavalo? — perguntou, iludindo qualquer comentário às palavras que acabava de escutar.
— Não. É melhor que procure dormir. Amanhã vai ter necessidade de todas as suas forças.
— Que quer dizer com isso?
— É muito claro. Que quando amanhecer nos poremos a caminho de Tucson. Não era para lá que se dirigia?
— Sim. E tenho de chegar quanto antes. A isso precisamente se deve o facto de ter trazido o seu cavalo, e de escolher esta rota.
De novo a escuridão a impediu de ver o sorriso do homem.
— Para fazer o que fez não tinha necessidade de roubar... bom, digamos, tomar «Bailarino» por empréstimo. Com esse cavalo poderia ter avançado com muito maior rapidez. Teria feito o mesmo com qualquer outro.
— É possível. Mas com nenhum outro cavalo me teria atrevido a atravessar este deserto. Morria de impaciência ao esperar as horas que faltavam para a saída da diligência de Tucson, quando vi um moço do hotel conduzindo «Bailarino» para as cavalariças. Ouvi, ao mesmo tempo, alguns comentários acerca das qualidades do cavalo e foi então que julguei ter encontrado a solução. Com aquele animal e atalhando pelo deserto, chegaria a Tucson, quase três dias antes da diligência. E era-me tão necessário chegar rapidamente a casa, que não pensei mais. Naquela mesma noite enverguei estas roupas, entrei nas cavalariças do hotel e...
— E levou o «Bailarino», já sei — interrompeu o homem. — Eu inteirei-me do caso na manhã seguinte. Tardei algumas horas a descobrir o caminho que tinham tomado e meia hora mais para procurar um cavalo que me oferecesse certas garantias. Logo parti em sua perseguição e..., bem, estava disposto, a recuperar o «Bailarino», ainda que tivesse de esquadrinhar toda a nação.
— Lamento ter-lhe causado tantas maçadas, senhor — desculpou-se ela. — Pode acreditar que pensava devolver-lhe o seu cavalo. Além disso, pelo favor que me fazia, meu pai pagaria gostosamente a quantia que você próprio fixasse como indemnização.
Junto às «choyas», aqueles que mantinham esta conversa eram agora mais duas sombras.
— Bem — disse, de súbito, o- homem. — Já que não quer esperar a manhã, acabe de me aclarar este mistério. Deve ser coisa muito importante para que uma mulher se arrisque a... atravessar sozinha o deserto de Gila.
— Muitíssimo importante! Imagine que da pressa que eu me dê em chegar a Tucson depende a vida de meu pai.
Na profunda escuridão da noite, o homem fez um gesto impercetível. Depois...
— Efetivamente a coisa é importante — declarou, sem a menor entoação especial. — Continue!
— Já vai ver. Tudo se resume a isto: Há quatro dias surpreendi uma conversa entre o meu tio e o seu capataz. Havia três meses que me encontrava no seu rancho de Tubac e jamais vira o meu tio tão nervoso. Claro que aquilo que lhes ouvi dizer não era para menos. Depois de vários anos sem saberem nada dele, tinham-se inteirado de que o pior inimigo de meu pai se dirigia a Tucson. O caso é que pouco depois de ele ter abandonado a povoação tinham encontrado morto um irmão seu, em terras da nossa propriedade. A sua família, baseando-se no antigo antagonismo que se votavam mutuamente, acusou a minha daquele crime.
«A não ter meu pai uma numerosa equipa de empregados ao seu serviço a guerra ter-se-ia desencadeado já entre eles. Pelo menos era isso o que nós pensávamos. Agora inteirámo-nos de que os nossos inimigos nada fizeram por estarem à espera da chegada do seu chefe. E segundo as notícias que meu pai tem dele, trata-se de um temível pistoleiro que deu muito que falar no Texas. Pelos lábios de meu tio pude inteirar-me de que esse homem chegou a Tubac há uns dias. Dirigia-se a Tucson e pelo que deduziam de certas perguntas que formulou propunha-se vingar o seu irmão na pessoa do chefe da minha família: o meu pai. Compreende agora porque tenho tanta urgência em chegar a Tucson?
Urna vez mais a escuridão impediu a mulher de observar o efeito que as suas palavras causavam ao seu interlocutor. Se tivesse podido ver-lhe o rosto, teria percebido a expressão glacial que se desenhara no rosto do homem, mal começava a sua explicação.
Contudo, chamou-lhe muito a atenção, o facto de o ouvir perguntar, de seguida, em vez de responder à sua pergunta:
— De modo que se expôs aos perigos deste deserto para avisar o seu pai de que se dirige a Tucson um pistoleiro à sua procura, não é? E não pensou nas consequências que poderia sofrer se o dono do cavalo de que se apropriou conseguisse alcançá-la? Imagine, por um momento, que eu não queria prosseguir. E. ainda mais: que eu fosse um homem que aproveitando o estar acompanhado apenas por uma mulher aqui neste deserto...
— Por sorte minha, você não é dessa espécie — interrompeu ela. E na sua voz havia convicção e segurança. — Convenci-me disso mal o ouvi abrir a Boca.
— De verdade? Então deve ser muito esperta. Ninguém se atreveria a fazer uma afirmação coma a sua, baseando-se simplesmente na voz de uma pessoa. Sem me conhecer expressou a sua opinião. Portanto deve conhecer muito hem esse homem que, segundo acaba de, me dizer, vai à procura de seu pai. Diga-me: não acha que esse pistoleiro, como você lhe chama, se encontra no seu direito de querer vingar-se daquele que lhe assassinou o irmão?
A voz dela tinha, ao responder, um timbre diferente do de há pouco:
— Disse-lhe que esse pistoleiro tenta assassinar o meu pai, e o meu pai nada teve que ver com a morte do homem que encontraram crivado de balas, nas suas terras.
— Está certa disso?
— Certíssima. Por acaso, quando tal devia ter acontecido, eu e meu pai estávamos em Tombstone. Tentei dize-lo aos Lasky, mas não tive maneira de poder falar-lhes. E isso apesar de o tentar muitas vezes. Nada sabia de Tucson desde que, era ainda criança, me haviam levado aos Nogales para poder estudar nas Missões, e confiava em que a minha declaração de alguma coisa serviria. Podia demonstrar que naquela altura meu pai se encontrava fora do povoado por ter ido buscar-me. Quando mataram aquele homem havia uma semana que estávamos em Tombstone. Como poderia meu pai tê-lo assassinado e por que razão o fazia?
— Abundam as razões para se matar um homem, minha senhora. Ainda que seu pai não o tivesse feito pessoalmente podia tê-lo ordenado. A senhora mesma disse há pouco que dispõe de muitos empregados ao seu serviço.
— Isso e certo, mas não o é que meu pai tenha dado semelhante ordem.
Naquele momenta um pálido fulgor começou a iluminar a paisagem. Era a lua que principiava a sua missão.
— Bem, menina, porque suponho que se trata de uma menina — disse ele então. Creio que já falamos bastante acerca disto. Procure descansar agora, para que amanha esteja em condições de retomar a caminho... Já comeu alguma coisa?
— Sim. Fi-lo quando começou a escurecer. Depois tencionava deitar-me a dormir até que o sol nascesse. E, a propósito: o meu nome e Klondy Patterson. Agora sou eu quem lhe vai dar a oportunidade de demonstrar que não me equivoquei ao julgá-lo.
— Quer dizer que não me considera igual a esse pistoleiro que vai a procura de seu pai?
— Exato. Entre você e Jesse Lasky há uma diferença enorme. Segundo Holt, o nosso capataz, Jesse Lasky já era em criança uma pessoa ma. A prova e que abandonou o povoado em busca de aventuras, exatamente quando mais falta fazia a seus pais.
— Ora! Foi então isso o que lhe disse o seu capataz, não?... Bom, será melhor que deixemos isso definitivamente. Amanha teremos tempo para continuar esta conversa. Particularmente, acho-a muito interessante... Bom! Vamos dormir.
Meia hora mais tarde, a rapariga, rendida pelo cansaço, dormia junto do homem que, pensativo e silencioso, estava sentado perto dela.
A luz da lua permitia agora ver com certa nitidez, o corpo prostrado da dorminhoca. Contudo o seu rosto, oculto pelo amplo chapéu que o cobria, continuava a ser invisível para ele.
Até então não quisera fumar, para não dar a impressão de que pretendia aproveitar o lume do cigarro, como meio, para a ver. Daí o fazê-lo agora. E enquanto incendiava a isca com a pederneira, o homem ciciou:
— Não se pode negar que és uma valente, rapariga. Mas...
Sem acabar a frase afastou-se dela para se aproximar do local onde deixara os cavalos. Ficou junto deles ate acabar de fumar o cigarro e por fim, deixando-se cair no solo a uns passos da jovem adormecida, dispôs-se também a descansar.
As horas foram decorrendo. A lua escondeu-se e no horizonte começou a despontar a claridade de um novo dia.
A rapariga continuava a dormir. Mas despertou bruscamente quando...
Misturado com o seco estampido de um disparo notou o silvo de uma bala que passou roçando-lhe o pescoço.
Assustada, soergueu-se para olhar em frente e...
Um grito de horror lhe saiu dos lábios. A menos de duas jardas de distância, um homem, que não podia ser outro senão o mesmo da noite anterior, aparecia-lhe pela frente com um revólver fumegante na mão.
E o revólver estava apontado a sua cabeça!
— Perdoe-me a brusca maneira de a despertar, minha senhora — foram as primeiras palavras que ouviu — Olhe para trás de si, encontrará a explicação para o meu tiro.
Sentada, tremendo ainda pela impressão recebida, obedeceu a indicação que lhe haviam feito: voltou a cabeça para olhar para trás de si e...
Então, com a elasticidade de uma mola, pôs-se de Pe.
Acabava de descobrir, quase justamente onde pouco antes descansara a cabeça, uma repugnante e enorme serpente movendo-se ainda no estertor da sua agonia...
Uma bala havia-lhe esmigalhado a cabeça, salvando a vida da rapariga.
Porque o reptil era uma «cencuate>>, a mais temível e venenosa serpente de todas as que povoam o deserto.
— Já não tem que ter medo — e ao voltar-se agora para aquele que falava, notou que o revólver já havia desaparecido no respetivo coldre. — Lamento tê-la assustado, mas não podia fazer outra coisa. Descobri esse bicho quando já era tarde para poder avisá-la.
O homem falava com uma segurança e, ao mesmo tempo, com uma despreocupação tal, que ela se enganou ao supor que o que ele fazia era tratar de tirar importância a coisa.
Mas não era assim. As palavras que ouviu em seguida demonstraram-no:
— Teve sorte em que eu aqui estivesse, menina. A não ser assim, nunca chegaria a Tucson. Que isso lhe sirva de exemplo para não experimentar atravessar, outra vez, o deserto sozinha.
E enquanto falava o homem não deixava de lhe olhar o rosto.
Tratava-se de uma rapariga muito bonita. As roupas que envergava não permitiam ter uma ideia exata d seu corpo, mas pelo rosto quase se podia assegurar que era de linhas esbeltas.
De figura miúda, possuía uma linda carita da qual ressaltavam os grandes olhos negros. A longa cabeleira de cor de acaju estava presa na nuca com um laço. Estava um pouco pálida, mas os seus olhos não demonstravam qualquer temor.
— Mais um favor que tenho de lhe agradecer, senhor: — articulou ela, olhando-o de alto a baixo e sem se mover do local onde estava — Se alguma vez puder ser-lhe útil seja no que for, não hesite em pedir-mo. Os Patterson têm fama de agradecidos.
Por um momento pareceu que ele ia dizer qualquer coisa em resposta aquelas palavras. Mas, como se te vesse mudado de opinião, limitou-se a manifestar:
— Acabo de fazer um pouco de café. Tomaremos tu golo e retomaremos o caminho. Ah! Lembre-se de que terá de mudar de cavalo. Eu montarei o «Bailarino».
Dois dias depois, por volta do meio-dia, faziam sua entrada em Tucson.
Uma vez na praça, o cavaleiro que montava o magnifico garanhão, que atraia os olhares de quantos o viam, ajudou a jovem a descer da sua montada.
E ainda a agarrava no ar, quando...
Uma mão agarrou o cavaleiro pelo ombro, obrigando-o a girar sobre si mesmo, para se ver na linha de tiro de um revolver de seis repetições.
Um homenzarrão de grandes bigodes, que ornavam um rosto salpicado de sardas, estava por detrais da arma. A cólera fulgurava-lhe no olhar, quando ordenou:
— Afaste-se da minha filha, Lasky! Afaste-se ou dar-lhe-ei um tiro.
Ao ouvir aquelas palavras a jovem soltou um afogado grito de espanto.
— Não pode ser, não é verdade, senhor? O meu pai está a confundi-lo com outrem. Chamou-lhe Lasky.
— E é esse o meu nome, menina — respondeu aquele que durante dois dias fora seu companheiro de viagem. — Sou eu o... pistoleiro a quem desejava adiantar-se na sua viagem para aqui. Jesse Lasky em pessoa!
— Oh!
E a rapariga afundou o rosto entre as mãos.
Um pouco mais tarde despontaria a lua e o firmamento povoar-se-ia de milhões de estrelas cintilantes.
Os sons propagar-se-iam com maior nitidez. Um ou outro dos animais que povoavam aquelas solidões daria sinais de vida no seu noturno vagar, para procurar alguma presa. Os catos e as «choyas» (1) projetariam as suas sombras na areia, como que num intento de animar um tanto a paisagem, povoando-a de espectros fantasmagóricos.
E, contudo...
Nada daquilo diminuiria a avassaladora solidão. A não ser, talvez, fazer ressaltar com maior intensidade do que nunca a grandiosa imensidade dos mistérios da Natureza.
Porque o deserto continuaria a ser o mesmo.
Ali, naquelas paisagens de desolação e morte, não se podia pensar outra coisa. Ainda que, por vezes...
O cavaleiro que avançava para o Norte, esquadrinhando, sem cessar, o terreno que o rodeava, parecia estar acostumado àquele ambiente. Conduzia o cavalo com pulso firme e seguro sem mostrar a menor hesitação.
Não parecia ser a primeira vez que atravessava um deserto. Mais do que um caminhante aventuroso e decidido, parecia um perseguidor.
E assim era com efeito.
O cavaleiro havia saído de Tubac três dias antes. Não hesitara um momento em se embrenhar no deserto de Gila. Tinha a convicção de que, mais tarde ou mais cedo, alcançaria o objetivo que o obrigara a entrar ali.
Travemos contacto com ele no, momento em que, ao ocultar-se o sol por detrás do afastado cume do Baboquivari Peak, deteve a sua montada numa pequena elevação arenosa.
Permaneceu imóvel, na sela, durante uns segundos, olhando, como sempre, em frente. E, de súbito...
Procedente de algum local que não ficava muito longe daquele onde se encontrava, chegou-lhe aos ouvidos o inconfundível relincho de um cavalo.
Qualquer coisa semelhante a um sorriso apareceu no rosto do cavaleiro.
Mas a escuridão, que havia momentos começara a invadir o local, tornava impossível distinguir-se se era, de alegria ou de inquietação a sua causa.
As suas pupilas penetrantes mergulharam nas sombras que tinham principiado a envolvê-lo. À sua frente apenas distinguia os vultos de alguns catos, com os seus longos braços.
Esperou ouvir, de novo, o mesmo relincho de há pouco, mas foi inútil.
— Tanto faz, «Bailarino» — monologou em voz baixa. — De qualquer forma, hei-de encontrar-te.
De um dos bolsos da samarra que envergava, tirou qualquer coisa que meteu na boca da sua cavalgadura. Não eram mais do que umas pedritas de sal, para evitar que o animal respondesse aos relinchos do outro cavalo.
E novamente se pôs em marcha.
Caminhava assim, quase às escuras já, confiado apenas no seu instinto de orientação.
A diferença estava em que o fazia agora com deliberada lentidão, observando, à sua volta, o menor desta, lhe do terreno que percorria.
Decorrera quase um quarto de hora depois que abandonara o outeiro, e, de súbito...
A sua mão direita acariciou o pescoço do animal que montava. Seguidamente pronunciou umas palavras em voz baixa e logo parando junto de um enorme cato prendeu ali o cavalo.
O cavaleiro, caminhando agora a pé, torceu um pouco para a esquerda. Avançou silencioso até chegar a umas três jardas de distância de um aglomerado, de «choyas», e...
Bruscamente saltou para diante. Uma mão férrea segurou as rédeas do cavalo que se encontrava preso ali e a outra, empunhando um revólver de seis tiros, apontou ameaçadoramente para a figura que, estendida no solo, se via a seu lado. Depois...
— Acabou-se o passeio, amigo — articulou com voz fria e autoritária. — Levante as mãos ou furá-lo-ei como um passador! Não admito truques de espécie alguma!
Ao som da sua voz, o vulto daquele que se encontrava estendido no solo deu um estremeção de sobressalto. Ao contrário, o cavalo que acabava de segurar, depois de arrebitar as orelhas, pareceu sossegar completamente.
— Fez mau negócio, roubando-me o cavalo, amigo — continuou a fazer-se ouvir a voz do que empunhava o revólver. — Quem quer que monte o «Bailarino» sem minha autorização, está condenado a morrer... Vamos! Levante-se imediatamente e dê uns passos até aqui! Quero ver-lhe a cara, antes de o enviar para o inferna!
O homem já não sujeitava o cavalo, mas continuava a seu lado, enquanto o seu revólver se agitava significativamente, apontando ao vulto, do, sem dúvida, surpreendido dorminhoco.
— É mau roubar um cavalo, por estas terras, amigo — e a voz do que sustinha o revólver ressumava ironia. — Mas roubar o «Bailarino» isso é uni suicídio. Julgou, por acaso, poder escapar-se ao meu castigo por se ter embrenhado neste deserto?... Vamos! Venha até aqui e responda! Mas sem baixar os braços, hem?
O vulto, que se adivinhava sentado no solo, moveu-se com dificuldade. Não era, na verdade, fácil levantar-se tendo os braços levantados. Por fim conseguiu-o.
Apesar da escuridão, o que tinha o revólver pôde verificar que se tratava de uma pessoa de pouca envergadura física. As calças pareciam estar-lhe demasiado grandes. O mesmo acontecia com a jaqueta que envergava. E quanto ao chapéu, preso ao pescoço com uma fina correia, ainda que não o tivesse posto, era tão grande que as suas abas, aparecendo atrás e sobre a cabeça, convertiam numa sombra a parte do corpo assente sobre os ombros.
Mas bastou apenas um segundo para que o do revólver encontrasse uma explicação de tudo ao identificar a espécie de inimigo com que tinha de haver-se.
Dos lábios daquele que tinha os braços ao alto acabavam de brotar as seguintes palavras:
— Não, era minha intenção roubar-lhe o seu cavalo, senhor. Pensava devolver-lho, juntamente com uma quantia, como indemnização, apenas tivesse chegado a Tucson.
Naturalmente não foram as palavras em si o que fizeram soltar ao do revólver uma exclamação de surpresa. É que...
A voz que acabava de ouvir pertencia a uma mulher.
— Maldição! — exclamou, enquanto guardava a arma. — Tenho ganas de morrer de vergonha. Uma mulher! Foi uma mulher que me roubou o cavalo!
— Repito que não lho roubei — ouviu que lhe respondiam, ao mesmo tempo que quem falava baixava os braços que até então mantivera ao alto. — Ainda que reconheça que lhe sobram razões para assim, pensar, a verdade é bem diferente. Convencer-se-ia disso dentro de alguns dias.
O homem avançou uns passos até àquela diminuta figura que lhe falava.
Mas de nada lhe serviu. A escuridão era tão profunda que não podia distinguir senão o vulto da sua interlocutora.
— Sente-se onde estava — ordenou, enquanto retrocedia com ela até alcançar a proteção das «choyas». — Acho que assim, às escuras, não deverá falar. Não posso ler-lhe nos olhos se pretende enganar-me. Para começar vou oferecer-lhe uma oportunidade de demonstrar que é sincera.
— Que espécie de oportunidade? — a voz da rapariga, agora mais tranquila e menos preocupada, tinha um timbre agradável e argentino.
— Vou buscar o cavalo que tive de comprar por sua culpa. Não tem comparação com «Bailarino», mas é um bom animal — disse, afastando-se.
Regressou pouco depois, montando o cavalo que deixara preso ao cato. E, ao apear-se, ouviu dizerem-lhe:
— Já se convenceu da minha sinceridade? Se quisesse teria podido escapar, montada no «Bailarino».
A escuridão impediu-a de ver o sorriso esboçado pelos lábios do seu companheiro ocasional.
— Engana-se, minha senhora — respondeu. -- Agora seria muito diferente de noite em que me levou o «Bailarino» de Tubac. Mal o tivesse montado, o próprio cavalo a conduziria à minha presença. Posso, inclusivamente, assegurar-lhe que, se o tivesse desejado, teria, podido reavê-lo sem ter tido necessidade de vir até aqui. Recorda-se quando ele relinchou, haverá coisa de meia hora? Nada mais teria sido necessária para o obrigar a regressar junta de mim, senão, chamá-lo. Não o fiz porque queria também apanhar o ladrão. Agradeça a esse facto o não se encontrar agora neste deserto sem montada e condenada a sofrer a pior das mortes.
No silêncio que, se seguiu ele pôde perceber claramente o suspiro que a rapariga deixava escapar. Logo…
— Quer que lhe explique a razão por que lhe levei o cavalo? — perguntou, iludindo qualquer comentário às palavras que acabava de escutar.
— Não. É melhor que procure dormir. Amanhã vai ter necessidade de todas as suas forças.
— Que quer dizer com isso?
— É muito claro. Que quando amanhecer nos poremos a caminho de Tucson. Não era para lá que se dirigia?
— Sim. E tenho de chegar quanto antes. A isso precisamente se deve o facto de ter trazido o seu cavalo, e de escolher esta rota.
De novo a escuridão a impediu de ver o sorriso do homem.
— Para fazer o que fez não tinha necessidade de roubar... bom, digamos, tomar «Bailarino» por empréstimo. Com esse cavalo poderia ter avançado com muito maior rapidez. Teria feito o mesmo com qualquer outro.
— É possível. Mas com nenhum outro cavalo me teria atrevido a atravessar este deserto. Morria de impaciência ao esperar as horas que faltavam para a saída da diligência de Tucson, quando vi um moço do hotel conduzindo «Bailarino» para as cavalariças. Ouvi, ao mesmo tempo, alguns comentários acerca das qualidades do cavalo e foi então que julguei ter encontrado a solução. Com aquele animal e atalhando pelo deserto, chegaria a Tucson, quase três dias antes da diligência. E era-me tão necessário chegar rapidamente a casa, que não pensei mais. Naquela mesma noite enverguei estas roupas, entrei nas cavalariças do hotel e...
— E levou o «Bailarino», já sei — interrompeu o homem. — Eu inteirei-me do caso na manhã seguinte. Tardei algumas horas a descobrir o caminho que tinham tomado e meia hora mais para procurar um cavalo que me oferecesse certas garantias. Logo parti em sua perseguição e..., bem, estava disposto, a recuperar o «Bailarino», ainda que tivesse de esquadrinhar toda a nação.
— Lamento ter-lhe causado tantas maçadas, senhor — desculpou-se ela. — Pode acreditar que pensava devolver-lhe o seu cavalo. Além disso, pelo favor que me fazia, meu pai pagaria gostosamente a quantia que você próprio fixasse como indemnização.
Junto às «choyas», aqueles que mantinham esta conversa eram agora mais duas sombras.
— Bem — disse, de súbito, o- homem. — Já que não quer esperar a manhã, acabe de me aclarar este mistério. Deve ser coisa muito importante para que uma mulher se arrisque a... atravessar sozinha o deserto de Gila.
— Muitíssimo importante! Imagine que da pressa que eu me dê em chegar a Tucson depende a vida de meu pai.
Na profunda escuridão da noite, o homem fez um gesto impercetível. Depois...
— Efetivamente a coisa é importante — declarou, sem a menor entoação especial. — Continue!
— Já vai ver. Tudo se resume a isto: Há quatro dias surpreendi uma conversa entre o meu tio e o seu capataz. Havia três meses que me encontrava no seu rancho de Tubac e jamais vira o meu tio tão nervoso. Claro que aquilo que lhes ouvi dizer não era para menos. Depois de vários anos sem saberem nada dele, tinham-se inteirado de que o pior inimigo de meu pai se dirigia a Tucson. O caso é que pouco depois de ele ter abandonado a povoação tinham encontrado morto um irmão seu, em terras da nossa propriedade. A sua família, baseando-se no antigo antagonismo que se votavam mutuamente, acusou a minha daquele crime.
«A não ter meu pai uma numerosa equipa de empregados ao seu serviço a guerra ter-se-ia desencadeado já entre eles. Pelo menos era isso o que nós pensávamos. Agora inteirámo-nos de que os nossos inimigos nada fizeram por estarem à espera da chegada do seu chefe. E segundo as notícias que meu pai tem dele, trata-se de um temível pistoleiro que deu muito que falar no Texas. Pelos lábios de meu tio pude inteirar-me de que esse homem chegou a Tubac há uns dias. Dirigia-se a Tucson e pelo que deduziam de certas perguntas que formulou propunha-se vingar o seu irmão na pessoa do chefe da minha família: o meu pai. Compreende agora porque tenho tanta urgência em chegar a Tucson?
Urna vez mais a escuridão impediu a mulher de observar o efeito que as suas palavras causavam ao seu interlocutor. Se tivesse podido ver-lhe o rosto, teria percebido a expressão glacial que se desenhara no rosto do homem, mal começava a sua explicação.
Contudo, chamou-lhe muito a atenção, o facto de o ouvir perguntar, de seguida, em vez de responder à sua pergunta:
— De modo que se expôs aos perigos deste deserto para avisar o seu pai de que se dirige a Tucson um pistoleiro à sua procura, não é? E não pensou nas consequências que poderia sofrer se o dono do cavalo de que se apropriou conseguisse alcançá-la? Imagine, por um momento, que eu não queria prosseguir. E. ainda mais: que eu fosse um homem que aproveitando o estar acompanhado apenas por uma mulher aqui neste deserto...
— Por sorte minha, você não é dessa espécie — interrompeu ela. E na sua voz havia convicção e segurança. — Convenci-me disso mal o ouvi abrir a Boca.
— De verdade? Então deve ser muito esperta. Ninguém se atreveria a fazer uma afirmação coma a sua, baseando-se simplesmente na voz de uma pessoa. Sem me conhecer expressou a sua opinião. Portanto deve conhecer muito hem esse homem que, segundo acaba de, me dizer, vai à procura de seu pai. Diga-me: não acha que esse pistoleiro, como você lhe chama, se encontra no seu direito de querer vingar-se daquele que lhe assassinou o irmão?
A voz dela tinha, ao responder, um timbre diferente do de há pouco:
— Disse-lhe que esse pistoleiro tenta assassinar o meu pai, e o meu pai nada teve que ver com a morte do homem que encontraram crivado de balas, nas suas terras.
— Está certa disso?
— Certíssima. Por acaso, quando tal devia ter acontecido, eu e meu pai estávamos em Tombstone. Tentei dize-lo aos Lasky, mas não tive maneira de poder falar-lhes. E isso apesar de o tentar muitas vezes. Nada sabia de Tucson desde que, era ainda criança, me haviam levado aos Nogales para poder estudar nas Missões, e confiava em que a minha declaração de alguma coisa serviria. Podia demonstrar que naquela altura meu pai se encontrava fora do povoado por ter ido buscar-me. Quando mataram aquele homem havia uma semana que estávamos em Tombstone. Como poderia meu pai tê-lo assassinado e por que razão o fazia?
— Abundam as razões para se matar um homem, minha senhora. Ainda que seu pai não o tivesse feito pessoalmente podia tê-lo ordenado. A senhora mesma disse há pouco que dispõe de muitos empregados ao seu serviço.
— Isso e certo, mas não o é que meu pai tenha dado semelhante ordem.
Naquele momenta um pálido fulgor começou a iluminar a paisagem. Era a lua que principiava a sua missão.
— Bem, menina, porque suponho que se trata de uma menina — disse ele então. Creio que já falamos bastante acerca disto. Procure descansar agora, para que amanha esteja em condições de retomar a caminho... Já comeu alguma coisa?
— Sim. Fi-lo quando começou a escurecer. Depois tencionava deitar-me a dormir até que o sol nascesse. E, a propósito: o meu nome e Klondy Patterson. Agora sou eu quem lhe vai dar a oportunidade de demonstrar que não me equivoquei ao julgá-lo.
— Quer dizer que não me considera igual a esse pistoleiro que vai a procura de seu pai?
— Exato. Entre você e Jesse Lasky há uma diferença enorme. Segundo Holt, o nosso capataz, Jesse Lasky já era em criança uma pessoa ma. A prova e que abandonou o povoado em busca de aventuras, exatamente quando mais falta fazia a seus pais.
— Ora! Foi então isso o que lhe disse o seu capataz, não?... Bom, será melhor que deixemos isso definitivamente. Amanha teremos tempo para continuar esta conversa. Particularmente, acho-a muito interessante... Bom! Vamos dormir.
Meia hora mais tarde, a rapariga, rendida pelo cansaço, dormia junto do homem que, pensativo e silencioso, estava sentado perto dela.
A luz da lua permitia agora ver com certa nitidez, o corpo prostrado da dorminhoca. Contudo o seu rosto, oculto pelo amplo chapéu que o cobria, continuava a ser invisível para ele.
Até então não quisera fumar, para não dar a impressão de que pretendia aproveitar o lume do cigarro, como meio, para a ver. Daí o fazê-lo agora. E enquanto incendiava a isca com a pederneira, o homem ciciou:
— Não se pode negar que és uma valente, rapariga. Mas...
Sem acabar a frase afastou-se dela para se aproximar do local onde deixara os cavalos. Ficou junto deles ate acabar de fumar o cigarro e por fim, deixando-se cair no solo a uns passos da jovem adormecida, dispôs-se também a descansar.
As horas foram decorrendo. A lua escondeu-se e no horizonte começou a despontar a claridade de um novo dia.
A rapariga continuava a dormir. Mas despertou bruscamente quando...
Misturado com o seco estampido de um disparo notou o silvo de uma bala que passou roçando-lhe o pescoço.
Assustada, soergueu-se para olhar em frente e...
Um grito de horror lhe saiu dos lábios. A menos de duas jardas de distância, um homem, que não podia ser outro senão o mesmo da noite anterior, aparecia-lhe pela frente com um revólver fumegante na mão.
E o revólver estava apontado a sua cabeça!
— Perdoe-me a brusca maneira de a despertar, minha senhora — foram as primeiras palavras que ouviu — Olhe para trás de si, encontrará a explicação para o meu tiro.
Sentada, tremendo ainda pela impressão recebida, obedeceu a indicação que lhe haviam feito: voltou a cabeça para olhar para trás de si e...
Então, com a elasticidade de uma mola, pôs-se de Pe.
Acabava de descobrir, quase justamente onde pouco antes descansara a cabeça, uma repugnante e enorme serpente movendo-se ainda no estertor da sua agonia...
Uma bala havia-lhe esmigalhado a cabeça, salvando a vida da rapariga.
Porque o reptil era uma «cencuate>>, a mais temível e venenosa serpente de todas as que povoam o deserto.
— Já não tem que ter medo — e ao voltar-se agora para aquele que falava, notou que o revólver já havia desaparecido no respetivo coldre. — Lamento tê-la assustado, mas não podia fazer outra coisa. Descobri esse bicho quando já era tarde para poder avisá-la.
O homem falava com uma segurança e, ao mesmo tempo, com uma despreocupação tal, que ela se enganou ao supor que o que ele fazia era tratar de tirar importância a coisa.
Mas não era assim. As palavras que ouviu em seguida demonstraram-no:
— Teve sorte em que eu aqui estivesse, menina. A não ser assim, nunca chegaria a Tucson. Que isso lhe sirva de exemplo para não experimentar atravessar, outra vez, o deserto sozinha.
E enquanto falava o homem não deixava de lhe olhar o rosto.
Tratava-se de uma rapariga muito bonita. As roupas que envergava não permitiam ter uma ideia exata d seu corpo, mas pelo rosto quase se podia assegurar que era de linhas esbeltas.
De figura miúda, possuía uma linda carita da qual ressaltavam os grandes olhos negros. A longa cabeleira de cor de acaju estava presa na nuca com um laço. Estava um pouco pálida, mas os seus olhos não demonstravam qualquer temor.
— Mais um favor que tenho de lhe agradecer, senhor: — articulou ela, olhando-o de alto a baixo e sem se mover do local onde estava — Se alguma vez puder ser-lhe útil seja no que for, não hesite em pedir-mo. Os Patterson têm fama de agradecidos.
Por um momento pareceu que ele ia dizer qualquer coisa em resposta aquelas palavras. Mas, como se te vesse mudado de opinião, limitou-se a manifestar:
— Acabo de fazer um pouco de café. Tomaremos tu golo e retomaremos o caminho. Ah! Lembre-se de que terá de mudar de cavalo. Eu montarei o «Bailarino».
Dois dias depois, por volta do meio-dia, faziam sua entrada em Tucson.
Uma vez na praça, o cavaleiro que montava o magnifico garanhão, que atraia os olhares de quantos o viam, ajudou a jovem a descer da sua montada.
E ainda a agarrava no ar, quando...
Uma mão agarrou o cavaleiro pelo ombro, obrigando-o a girar sobre si mesmo, para se ver na linha de tiro de um revolver de seis repetições.
Um homenzarrão de grandes bigodes, que ornavam um rosto salpicado de sardas, estava por detrais da arma. A cólera fulgurava-lhe no olhar, quando ordenou:
— Afaste-se da minha filha, Lasky! Afaste-se ou dar-lhe-ei um tiro.
Ao ouvir aquelas palavras a jovem soltou um afogado grito de espanto.
— Não pode ser, não é verdade, senhor? O meu pai está a confundi-lo com outrem. Chamou-lhe Lasky.
— E é esse o meu nome, menina — respondeu aquele que durante dois dias fora seu companheiro de viagem. — Sou eu o... pistoleiro a quem desejava adiantar-se na sua viagem para aqui. Jesse Lasky em pessoa!
— Oh!
E a rapariga afundou o rosto entre as mãos.
(1) Planta leguminosa.
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