PAS499. Morto o cão, acabou-se a raiva (epitáfio para um xerife)

— Conheço a minha obrigação, Teker, e não os aconselho a que ma recordem. Farei o trabalho eu só, sem a ajuda de ninguém; para isso sou o xerife. Ocupem-se do enterro do doutor. Persegui-los-ei até ao Texas, se for necessário. Mas, contem com eles e preparem as forcas.
Disse-o com tal convicção que ele mesmo se admirou da sua própria audácia. Sentia frio, embora estivesse coberto de suor. Mas, já estava dito. Não podia voltar atrás. Os que o rodeavam, talvez temendo uma posterior desculpa, não cessavam de o olhar. O xerife Blackford pôs o chapéu na cabeça e saiu para a rua, franzindo o sobrolho e caminhando pesadamente. Ao verem-no tão decidido, em direção ao seu escritório, começaram a respirar aliviados.
— É um bom xerife — disse alguém. — É preciso ter estômago para recusar a ajuda.
— Realmente, tens razão e o facto de ele parecer indolente é porque nunca teve ocasião de demonstrar o seu valor até agora.
— A demonstração terá de ser espantosa. Eles são seis desalentados.
Exatamente a mesma coisa pensava o xerife enquanto caminhava pelo caminho. Seis contra um. Seis profissionais do revólver, rápidos e destros, contra uni cinquentão barrigudo, vencido pela moleza e arrepiado pelo pavor. Mas, a estrela de prata, talvez pelo que simbolicamente significa, dá forças para tentar realizar as mais arriscadas empresas. Blackford sabia que a atuar merecia um prémio pela temeridade, embora, à medida que avançava, os seus passos fossem perdendo a firmeza e se tornassem mais lentos. Quando chegou ao escritório, meia Yegua City esperava ver cristalizados os seus louváveis alardes de valor. Respirou fundo, entrou na cavalariça anexa e começou a selar o cavalo cinzento.
Não se apressou a fazê-lo e por isso demorou uns bons quinze minutos a levar a cabo uma operação que de outras vezes não lhe levava mais de cinco. A seguir perdeu um pouco mais de tempo tirando uma espingarda do armeiro, carregou-a pacientemente e meteu-a no coldre lateral. Intimamente, desejava que os fugitivos estivessem muito longe da povoação. Percorreria toda a região, ainda que demorasse uma semana, mas seria impossível alcançá-los. Depois, regressaria a Yegua e ninguém duvidaria do seu bom desejo de fazer justiça, embora, claro, lhe tivessem tomado uma tão grande dianteira que não tinha podido cumprir a sua missão.
— Preciso de mais alguma coisa, Blackford? — inquiriu, mordaz um homem alto e delgado.
— Talvez fosse conveniente comeres um pouco — acrescentou outro, em igual tom. — A perseguição promete ser longa.
— Uma chávena de café também não caía nada mal. A minha mulher pode preparar-ta.
As insinuações trocistas da parte de pessoas amigas feriram-lhe a alma, mas não replicou. O seu furor tinha desaparecido. Era um homem de bons sentimentos, pacífico e incapaz de arriscar a vida como lhe pediam insistentemente. Escarneciam-no até à ofensa, reprovando-lhe a sua absoluta falta de energia. Não tentou sequer argumentar. Resignado, sentindo-se abatido, saltou para a sela e tomou as rédeas. Ia cumprir o seu dever, o penoso dever do cargo que desempenhava, e toda aquela gente nunca poderia compreender que também era necessário valor para enfrentar calmamente a sacrifício sabendo de antemão que o não podia evitar.
A opinião pública falaria de Jack Blackford, referindo-se a ele como um cobarde. Picou de esporas e o cavalo arrancou a trote, batendo cora as ferraduras no tapete de fino pó que cobria o caminho. Na verdade, desperdiçara tanto tempo nos preparativos que a cavalgada, contra o que esperava, não o levou demasiado longe. Antes de sair da rua, próximo já das últimas casas, o seu coração deixou de bater e o sangue, alterada a circulação, subiu-lhe todo ao cérebro transtornado.
— Olhem! — gritou uma voz surpreendida.
Quantos presenciavam a sua marcha viram-no, de repente, puxar as rédeas, erguer-se sobre a sela e encolher-se de seguida, como um ouriço ameaçado: O seu pânico foi tão tangível que todos o experimentaram mentalmente. Animados pela curiosidade, desviaram a vista... até encontrarem os seis cavaleiros esfarrapados, mas bem munidos de armas, que entravam alegremente pelo extremo sul de Yegua City. No sexteto, havia confiança, força e perigo. Isto notava-se com um simples olhar... e gelava os espíritos.
— São eles! — exclamou, pálido, Gadison. — Atreveram-se a voltar!
— Os ladrões! — suspirou, engolindo em seco, Nino Paincely.
Um calafrio açoutou a rua e encheu de inquietação todos os que a ocupavam. Blackford, pregado no mesmo sítio onde parara, esperou, duvidando entre atacá-los sem prévio aviso ou retroceder. Eles também o descobriram e o sinistro Grapes perguntou:
— Que aconteceu àquele fantoche?
—Talvez nos venha pedir contas por causa do doutor --- completou Westay, friamente.
— Usa uma estrela — apontou Pineshead.
— Achas que se atreverá a isso? — sorriu Luker Farson.— Isso custar-lhe-ia a vida.
— Claro, chefe. Não há quem nos vença — cantarolou Collier, obsequioso.
— Porque havemos de o malar? — discordou o terrível Kinglatt— Melhor seria enforcá-lo à vista de iodos... para que enfeite a rua principal. Um formoso pêndulo humano ficará às mil maravilhas nesta pocilga chamada Yogua City.
— Muito bem — concordou Luker.
— Agrada-te a ideia?
— Bastante. Já ouviram, rapazes. Se se resolver a atacar-nos, quero-o vivo. Servirá de exemplo e hão-de olhar-nos com respeito no futuro.
Naturalmente, o xerife Blackford não tinha escutado nem meia palavra da conversa deles. Ainda estavam bastante longe. Mas, bastava-lhe olhá-los para supor a sua decisão. Por outro lado, tão acusadora corno os delinquentes, a massa popular aguardava a atuação legal Encontrava-se, como vulgarmente se diz, entre a espada e a parede. Despedindo-se deste mundo, reconfortado com a esperança de que o seu sacrifício o levaria à categoria de herói em todo o distrito, decidiu que só lhe restava uma saída: defender com as armas o cargo que havia jurado, embora perdesse a vida na empresa.
— Alto! — ordenou, fingindo absolutamente o contrário do que sentia. — Considerem-se presos em nome da Lei.
As gargalhadas cínicas dos seis homens demonstraram bem às claras o pouco que conseguiu assustá-los a sua ameaça. Continuaram a avançar, formando uma barreira homogénea e sólida, dispostos a varrê-lo como se fosse uma mal cheirosa imundície. O xerife aproximou a mão da coronha, embora Deus bem soubesse que lhe faltariam as forças quando soasse o momento do empregar o revólver.
Westy, Grapes, Pineshead e o genial Kinglatt imitaram-no. Colher e Luker Falsam foram os únicos que adotaram pela espera, em vez da ação direta. A ambos parecia diverti-los imenso a cena ao ar livre, sem outro fundo que as anódinas casas e os curiosos interessados.
— De que nos acusa, amigo? — perguntou Luker,-encurtando as rédeas.
— De assassínio e roubo! Entreguem-se sem resistência.
— De acordo com o primeiro caso, embora não possa ser exatamente classificado de assassínio — replicou Farson, com um cinismo que eriçava os cabelos. — Foi a paga de uma má ação. A respeito do segundo, está num lamentável erro, xerife. Levámos as ferramentas emprestadas e agora dispunhamo-nos a devolvê-las. Não é assim, rapazes?
Os seus homens disseram que sim em silêncio, movendo as enchapeladas cabeças, e o próprio Pineshead apontou para as pás e picaretas penduradas no arção da sua sela.
— Afaste-se do nosso caminho — acrescentou Luker Farson, sibilante. — Ou afastá-lo-emos a tiros.
— Não podem fazer frente à Lei. Vou prendê-los
Durante uns segundos, tão torturantes que impediam a respiração, as testemunhas perceberam claramente a tensão do momento e convenceram-se absolutamente de que a representação acabaria cheirando a pólvora. Reações diferentes se originaram entre eles, até ao extremo de se dividirem em dois partidos bem definidos. Uns afastaram-se pouco a pouco, iniciando a retirada para procurarem refúgio. Outros, solidarizando-se com o agonizante Blackford, resolveram presenciar o fim e até intervir em apoio do xerife.
— Não… não tolero delitos no meu distrito — insistiu o xerife, em tom vacilante. — Modifiquem a vossa atitude ou...
— Vamos! — gritou Luker Farson, perdendo a paciência. — Agarrem-no, que eu quero enforcá-lo!
Acabava de ser pronunciada a última palavra e esta tinha categoria de irrevogável sentença. Seis revólveres lançaram reflexos ao mesmo tempo, com a intensa luz do sol. Também Blackford, disposto a continuar com a comédia até descer fatalmente o pano, puxou do revólver, aceitando o seu destino. Mas, quando se encontrou cm condições de disparar, os tiros surgiram da pandilha de Farson, contínua e ruidosamente.
O encontro consumou-se com vertiginosa rapidez. Westay e Grapes fizeram fogo sobre o xerife, que se inclinou na sela, largou a arma e, apertando o braço ferido, lutava ao mesmo tempo para não ser derrubado pelo cavalo que se empinava, assustado. A Lei e a Ordem de Yegua City tinham ficado fora de combate.
— Todos a eles! — gritou alguém, impetuoso.
— Não são mais de seis!
Sim. Meia dúzia certa. Quase nada, tendo em conta que na rua permaneciam ainda mais de cinquenta homens, luzindo revólveres nos quadris e sentindo-se justamente indignados contra os assassinos do doutor Carter. Um «Smith & Wesson» disparou da porta do «Drug Allonde», e Pineshead, voltando-se, desfechou com tanta certeza que o vaqueiro que o empunhava se estatelou com uma bala de chumbo entre as sobrancelhas. Aquilo enfureceu ainda mais os cidadãos de Yegua e converteu-se o tiroteio em batalha campal. Talvez tivessem conseguido resultados positivos se se tivessem previamente preparado para a peleja. Assim, teriam atacado em conjunto e não individual e desordenadamente. Nesta espécie de combate, as janelas correspondem aos cavalos, cuja maior mobilidade multiplica a sua ação ofensiva.
— Dispersem-se! — ordenou Luker. — E nada de contemplações!
Um pequeno grupo composto por quatro homens saltou para a rua, brandindo os revólveres e decididos a enfrentar a morte. Kinglatt, Grapes e Parson picaram de esporas e carregaram esmagadoramente contra eles. Só um pôde disparar e fê-lo com tal precipitação que o projétil se perdeu no espaço. Os outros, empurrados pelos animais a galope, foram derrubados e ficaram a arrastar-se no pó.
Um sujeito baixo e gordo que manejava um «Remington» de cano comprido, com péssima pontaria, tentou atacar Luker Farson pelas costas. Collier, empinando-se nos estribos, alojou-lhe uma bala no peito e o obeso atirador caiu por terra, esperneando e gemendo,.
A névoa de pólvora escurecia a rua, irritante, através da qual brilhavam chispas de fogo, escapavam agudos gritos e afogavam-se lamentos. Westay e o texano Pineshead, dando largas à sua selvajaria, saltaram os passeios e galoparam por eles, fazendo fugir quantos tentavam abrigar-se em portais e alpendres. Em poucos instantes se espalhou o pânica e se iniciou a debandada geral. A rua começou a despovoar-se no meio de gritos, desorientadas corridas e tropeços. A batalha havia terminado favoravelmente para os cruéis forasteiros, porque apenas se ouviam tiros isolados, tão distantes que se tornavam ineficazes.
Quando os revólveres ficaram novamente carregados, o silêncio voltou a apoderar-se do terreno, no qual não se viam mais que os despojos que testemunhavam a violência anterior. A derrota não admitia réplica. Homens caídos, maltratados ou arrastando-se na poeira, representavam as desorganizadas hostes de Yegua City. Seis cavaleiros orgulhosos, embriagados pela superioridade, desenfreados, deram uma volta, procurando com os malignos olhos de aço das armas possíveis emboscados. Não os havia. A fuga desordenada fora completa. O xerife Blackford, suspirando de dor, agarrava-se ao arção da sela., abandonado de todos, como que um náufrago a flutuar naquele mar embravecido.
— Foram-se — disse, rindo, Graves. — Já não lhes resta. vontade de repetir.
— Agora, tornámo-nos os donos da terra — acrescentou Colher. — Somos uns tipos de respeito.
— Pareces satisfeito, verme, — observou Westay. —Não compreendo como foste capaz de intervir no «baile».
— Ouve, Westay. Eu disse-te que...
— Deixem as discussões para outra altura! — atalhou Luker Farson, metendo os revólveres nos coldres. — Ainda temos que fazer.
— Referes-te ao que propuseste? — indagou Kinglatt.
— Com certeza. Tu falas pouco, rapaz, mas convém ouvir-te quando se dá esse milagre. Creio que já mostrámos o suficiente para fazer a nossa apresentação e provar até que ponto podemos ser perigosos. Decidi que permaneçamos uma temporada em Yegua City, porque aqui estaremos a salvo das patrulhas que nos procuram. Qual de vocês tem uma corda?
— Eu — respondeu Pineshead, desprendendo o seu laço de cânhamo.
— Tragam o xerife. Aquele sítio é bom para patíbulo.
Referia-se a um vasto casão que devia servir de cocheira das diligências quando alguma vez os referidos veículos se demoravam em Yegua City. Conduziu o cavalo para ali, enquanto nas suas costas soavam gargalhadas misturadas com gritos horrorizados do xerife Blackford. O beiral do telhado sobressaía: bastante e além disso, também estavam grossas vigas a descoberto.
Por uma delas, agilmente, o loiro Pineshead passou uma corda e em seguida fez um nó corredio. Westay e Grapes traziam Blackford, que se esforçava com bravura Para evitar o seu triste fim. A rua continuava deserta, sem que ninguém ousasse assomar o nariz pelas janelas.
— Metam-lhe a cabeça na laçada — indicou Farson. — Acabaremos quanto antes com este bicho.
Os gritos aflitivos do agente da Lei chegaram a todos, os cantos do povoado, mas nenhum dos seus habitantes se atreveu a prestar-lhe auxílio. Em suas casas, ainda alertados pela escaramuça de que se tinham saído tão mal, prestaram atenção e crisparam os punhos frenéticos, quando os gemidos se interromperam, de repente, afogando-se na garganta do homem da estrela.
Isto acontecia ao mesmo tempo que os seis foras-gidos puxavam em uníssono pelo extremo livre da corda e Blackford ascendia para o teto do casão suspenso pelo pescoço. Uns quantos esperneios e estertores completaram a sua agonia, depois da qual, impelida pelo seu último sofrimento, continuou oscilando: na cocheira, como um fatídico baloiço de morte.
— Já está — exclamou Luker Farson.
— Morto o cão, acabou-se a raiva. Vamos dar uma volta pela povoação. Tenho fome.
— Temos — disse Grapes, rindo e acariciando o afilado rosto. — O meu estômago já não pode suportar mais o prolongado jejum.
 - Pois claro - acrescentou Wes:ay. — Vamos festejar a coisa com abundante comida... e bons licores.
Sós, donos e senhores de Yegua City, percorreram a passo as ruas descritas, Tinham deixado a sua marca poucas horas depois de terem chegado e ninguém voltaria a respirar tranquilo enquanto durasse o seu império de terror. Luker Farson e a sua pandilha não tinham rival quando se tratava de demonstrar até que limite podia chegar a maldade humana.

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