PAS633. O primeiro dia de um vaqueiro no rancho panteão

Henry olhou em redor. O teto, inclinado, era interrompido de vez em quando pelas saliências de três ou quatro janelas do tipo das de águas furtadas. Assomou a urna delas e distinguiu ao longe, destacando-se obscuramente à luz da Lua na lívida brancura da planície, a sombria massa do panteão.
Acudiu-lhe imediatamente uma pergunta aos lábios, mas, por prudência, absteve-se de formulá-la. Estava cansado e desejava dormir, de modo que, escolhendo um catre, despiu-se e deixou-se cair pesadamente, adormecendo no mesmo instante.
Despertaram-no quando o sol não tinha ainda nascido. A um canto, havia um lavatório com um jarro e uma bacia. Lavou a cara, passou o pente pelo cabelo revolto, descendo em seguida à cozinha para tornar o pequeno almoço.
Quando terminaram, Amos conduziu-o á cavalariça, onde selaram os cavalos, O velhote, para a idade e defeito que possuía era bastante ágil, o que demonstrou ao montar sem ajuda. Saíram do rancho a passo rápido. Amos indicou a rota e durante meia hora cavalgaram em silêncio. Ao fim desse tempo, depararam com urna manada de reses, cujo número o rapaz calculou em cerca de trezentas. Estava no fundo de uma ribanceira, pastando em ambas as margens dum riacho que corria entre frondosas árvores.
— São estas -- disse Amos, detendo o cavalo.
— Para onde as temos de levar?
— Para o rancho. Quando lá chegarmos, dir-nos-ão o que temos a fazer.
Começaram a juntar a manada, a qual se pôs a andar com pouco entusiasmo. Mas, à força de gritos e incitamentos lá começaram a caminhar. Todo o rebanho saiu do arroio, percorrendo, em sentido inverso, o caminho que os dois homens tinham, anteriormente, feito.
Uma hora mais tarde, duas reses, sem motivo aparente, espantaram-se e fugiram.
— Vou alcançá-las -- gritou o rapaz, esporeando a montada. Partiu atrás delas. As vacas separaram-se mas em breve pôde alcançar uma delas, obrigando-a a voltar para junto da manada. A outra, esfumou-se na espessura das árvores.
Henry voltou atrás, procurando encontrar a rês. Descobriu-a meia hora mais tarde, estendida no solo e com o pescoço golpeado.
Puxou as rédeas do cavalo, olhando em torno, apreensivamente. Encontrava-se num local muito arborizado e, embora o animal jazesse no meio de uma pequena clareira, era absolutamente impossível averiguar o que haveria do outro lado daquela barreira vegetal.
O silêncio era absoluto.
Henry não era cobarde, mas aquela quietude, aquela solidão, apresentaram-se-lhe como algo sinistro e lúgubre. Permaneceu um momento imóvel, sem afastar os olhos do corpo do animal degolado. De súbito, inesperadamente, julgou ouvir um levíssimo ruído, algo corno um pequeno ramo quebrado inadvertidamente. Movido por um impulso que não soube explicar, agiu instintivamente.
Apenas um segundo após ter escutado o ligeiro rumor, inclinou-se para a frente, lançando-se ao chão. Antes de tocar com o corpo na erva ouviu um tiro. O zumbido da bala e o subsequente choque contra o tronco de uma árvore, foram claramente percetíveis por sobre o clamor do estampido. Rodou sobre si mesmo várias vezes, afastando-se do possível campo de tiro. Correu rapidamente para uma árvore próxima, atrás de cujo grosso tronco se entrincheirou.
Tirou os revólveres, engatilhando-os em silêncio. Esperou.
Decorreram uns minutos sem que nada sucedesse. Subitamente, ouviu um ruído semelhante a um cicio. Teve a sensação de que alguém se arrastava no solo, com o fim de o surpreender pelas costas. Apurou o ouvido, tentando localizar o invisível inimigo.
Girou lentamente sobre si mesmo, apoiando os ombros na árvore. Desta maneira, tinha as costas protegidas. O ruído continuou. A seis ou sete metros de distância julgou perceber um movimento nos matagais.
Baixou-se, devagar, sem desfitar aquele local. Depois, com gestos pausados, afastou-se do lugar onde se encontrava, procurando urna posição mais favorável. Encontrou-a num vão, entre duas moitas. Espreitou através da folhagem. Um pouco mais tarde os movimentos acentuaram-se.
Finalmente, um homem pôs-se de pé. Tinha um rifle na mão e olhava em volta, com expressão desconcertada. A nova posição em que o rapaz se encontrava fazia com que o homem ficasse de costas para aquele.
Pôs-se de pé e perguntou:
— Anda à minha procura, amigo?
O outro girou rapidíssimo sobre os calcanhares. Ao mesmo tempo, com o indicador, disparava o rifle. A precipitação fê-lo errar o tiro. A bala passou a escassos centímetros do rapaz.
Henry percebeu que o homem, com movimentos frenéticos, tentava recarregar o rifle. Levantou a mão direita e, por seu turno, premiu o gatilho. Atingido em cheio sob o olho direito, o foragido saltou convulsivamente. Antes de tocar o solo já estava morto.
Nesse momento, vindos de muito perto, três ou quatro disparos sucederam-se com rapidez. As balas silvaram agudamente, estilhaçando os ramos pequenos ou cravando-se nos troncos das árvores.
Henry atirou-se ao chão, ficando imóvel. Acalmado o fragor dos tiros, o silêncio novamente voltou ao local.
O rapaz olhou para o sítio donde tinham partido os últimos disparos. Estava situado exatamente do outro lado da pequena clareira.
Meditou uns segundos. A distância era de uns vinte metros, possivelmente menos. Se quisesse apanhá-los, sem ser apanhado, deveria usar de astúcia.
Mantendo os revólveres fora do coldre, começou a rastejar pelo solo, com os cotovelos e joelhos, fazendo-o em direção oblíqua de modo a ter sempre diante dele alguns matagais que o ocultassem ã vista do inimigo.
O avanço foi lento, exasperante mesmo, para outro que não possuísse a paciência de Henry. Finalmente conseguiu colocar-se sem ser visto — assim o pensava a curta distância do lugar onde supunha ocultar-se o seu antagonista.
Espreitou através da folhagem. Algo chispou, ferindo-lhe as pupilas. Apontou cuidadosamente para o sítio onde se via brilhar aquele objeto que não era senão a fivela da correia de um chapéu. O seu dedo premiu o gatilho.
Enquanto os ecos da detonação se expandiam estrondosamente pelo âmbito circundante, o chapéu voou pelos ares.
Imediatamente soou uma descarga cerrada. Uma dúzia de balas achataram-se no solo em redor do rapaz que, demasiado tarde, compreendeu ter caído numa cilada.
Esmagou-se contra o chão, suportando aquela bátega de chumbo. Entre os estampidos pôde perceber gritos e blasfémias. Amaldiçoou-se profundamente por ter caído numa armadilha quase tão velha como a invenção das armas de fogo. O chapéu tinha sido posto ali com a simples e exclusiva intenção de o enganar, sem que debaixo do mesmo se encontrasse nenhuma cabeça.
Urna bala cravou-se no chão, a escassos centímetros do seu nariz, enviando-lhe uma nuvem de terra para os olhos. Esfregou-os, sem deixar de resmungar mas também sem ousar mover-se daquele sítio, com receio de se tornar visível aos adversários.
Subitamente, urna figura apareceu a escassos metros dele. O indivíduo disparava incessantemente os dois revólveres, confiando mais na densidade do fogo que na pontaria. Tornaram a chover as balas em redor do rapaz. Este levantou a mão direita e disparou rapidamente duas vezes, rodando logo sobre si mesmo, com incrível ligeireza.
Trovejou um rifle várias vezes seguidas, perseguindo-o encarniçadamente. Pôde alcançar a proteção de uma árvore, atrás da qual, de joelhos, ficou entrincheirado.
Ouviu claramente o ruído das balas penetrando no tronco da árvore. Súbito, o homem do rifle silenciou.
Henry reconheceu, com um suspiro de alívio, a voz do velho Amos. Soaram mais estampidos de pistola.
Dois cavalos irromperam bruscamente na clareira, um dos quais montado pelo próprio Amos. Rosemary vinha no outro.
— Escondam-se — gritou-lhes.— Estão oferecendo um alvo magnífico.
A rapariga olhou na sua direção, ainda que, de momento, o não conseguisse divisar.
— Onde está, McLeff? Saia, nada receie! Já se foram!
Henry fez o que lhe diziam. Todavia, não estava plenamente convencido, pelo que manteve os revólveres nas mãos.
Avançou para os dois. Rosemary contemplou-o com aquela curiosa expressão de indiferença que parecia ser habitual nela.
— Que sucedeu? — inquiriu, com voz desprovida de acento.
— Atacaram-me e defendi-me.
— Quantos eram?
— Se algum conseguiu fugir, é porque eram mais de dois. Liquidei um par, devem estar por ai os corpos.
Rosemary voltou ligeiramente a cabeça.
-- Vá ver, Amos.
— Sim, senhorita.
Enquanto o velhote se internava na espessura, Henry olhou a rapariga.
— Disse-me que entre um vaqueiro e o seguinte tinham os seus inimigos levado meses parao s liquidar -- expressou. — Mas comigo, pelo que vejo, não quiseram esperar tanto.
— Não me compreendeu, McLeff. Eu disse que o intervalo entre as mortes dos dois últimos vaqueiros que tive foi de alguns meses. Mas isso não significava que vivessem esse tempo, estando ao meu serviço. Ambos foram mortos no dia seguinte após terem começado a fazer parte de... digamos, do meu pessoal. O que quer dizer que não desejam que tenha companhia masculina no rancho.
-- A que espécie de companhia se refere? Falo no sentido estrito da palavra, senhorita Jullien. Não leve a mal as minhas palavras.
— Efectivamente é assim.
-- Porquê?
— Já lho disse ontem, ao virmos para cá. Querem que venda a propriedade.
— E tudo o que lhes ocorre é matar os homens que para si trabalham?
-- Pelos vistos — replicou friamente. — Tenho, no entanto, a ideia de que você tem a pele mais dura que os que o precederam.
— Assim o creio! — riu o rapaz. — Assim como penso também viver muitos anos e levar inumeráveis ramos de flores às campas dos que intentaram ou intentarão matar-me.
Ela olhou-o, pensativamente, durante alguns segundos. Ia falar, mas conteve-se oportunamente. Amos reapareceu, carregado com dois cinturões e respetivos revólveres.
— Ficam aí dois corpos para os coiotes — disse. — São os de Juff Keller e Elbert McRay.
— Nunca ouvi tais nomes—disse a rapariga.
— O primeiro era um vadio. O segundo pertence, ou melhor, pertenceu, ao pessoal do «Barra K. Barra».
— Viu se tinham dinheiro com eles, Amos? — inquiriu o rapaz.
— Porque o pergunta? Entre os dois, não tinham uma dezena de dólares.
— Esses tipos não me conheciam. Por força tinham de ser assassinos, pagos para me eliminarem — olhou Rosemary: — Acho tudo isto muito estranho.
— O que é que acha estranho, McLeff? -- perguntou ela.
Henry mordiscou o lábio inferior.
— Dir-lhe-ei mais tarde — respondeu. — Agora é preciso juntar as reses.
Chegaram ao rancho quase ao anoitecer. Encerraram o gado em amplos currais situados atrás dos anexos, após o que se lavaram para a ceia, a qual, como na noite anterior, foi servida por Goggy na cozinha.
Foram depois deitar-se. Henry trocou algumas frases indiferentes com Amos acerca dos incidentes da tarde e, tendo acabado de fumar um cigarro, estendeu-se no catre, adormecendo imediatamente.
Acordou algumas horas depois, brusca e repentinamente, sacudido interiormente por um sentimento indefinido e imperioso.
Pressentiu que estava prestes a suceder algo. Não sabia de que se tratava, mas sentiu--se nervoso e desassossegado.
Silenciosamente, pôs as calças e as botas, cingindo depois o cinturão com o coldre, cujos revólveres tinham sido escrupulosamente revistados após o tiroteio. Em seguida, assomou à janela mais próxima.
O silêncio era absoluto. Fazia bastante calor e a lua cheia espalhava claridade suficiente para permitir divisar os objetos a grande distância.
Subitamente, todo o corpo lhe estremeceu como sacudido por urna descarga elétrica. Imediatamente acudiu-lhe à memória a recordação de uma frase pronunciada por Sutton, o banqueiro, decorridas pouco mais de vinte e quatro horas.
«Tolices. Não existem fantasmas!»
E, no entanto, Henry, nesse momento, estava vendo um.

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