PAS640. Coração de mãe nunca se engana
Não havia nada visível à roda da casa. «Nevada Jim deu de beber à sua montada num tanque alimentado pela água que saía pelo extremo de uma comprida oxidada tubagem. Prendeu depois o animal a um dos ganchos da parede e sacudiu o pó do fato.
A seguir dirigiu-se para a cozinha, situado numa das pontas do edifício.
Ao aproximar-se da porta, distinguiu as costas de uma mulher que, a julgar pela sua esbelta e graciosa figura, devia ser muito nova. Uma cascata de compridos e negríssimos cabelos caía-lhe pelos ombros, convertida numa grande trança.
— Há de comer? — perguntou.
A rapariga virou-se, sobressaltada. Uns belos olhos de um azul intenso, que contrastavam agradavelmente com a sua tez morena, fitaram o intruso, assustados por um segundo. Mas um momento depois, a jovem já se tinha refeito.
Coube a vez a «Nevada» Jim de sobressaltar-se, ao contemplar o maravilhoso rosto dela. Por Deus, que bonita e formosa mulher!
Convertendo o seu pensamento em palavras, disse:
— De que parte do céu caíste, minha jóia?
Ela, ao contrário do que Nevada esperava, sorriu satisfeita.
— Descasque essas batatas — ordenou, pondo-se séria de repente; e apontou com um gesto um balde cheio a deitar por fora de grandes tubérculos. — Depois comerá.
«Nevada» Jim entrou com ar displicente e tomou lugar numa cadeira, às cavaleiras, perto da rapariga. Contemplou-a fixamente, como que extasiado, e sorrindo por sua vez, enquanto ela continuava a trabalhar junto das tachos.
— Se quer comer, descasque essas batatas — repetiu a jovem.
— Fugiu-me o apetite, riqueza... — murmurou ele — A propósito, como te chamas?
Ela virou-se e olhou-o no rosto.
— Procura trabalho, não é verdade? — perguntou, sem fazer caso do que ele dissera. — Pois bem: o capataz não está e meu pai também não. Portanto, terá de esperar que regressem. Agora vou chamar a...
— Um momento, jóia. Como te chamas... por favor? — pediu «Nevada», desta vez em tom menos cínico.
A rapariga guardou silêncio durante um momento. Por fim, disse:
— Maria.
— Maria — repetiu ele, parecendo acariciar o nome ao pronunciá-lo.
De súbito, dando ouvidos a um repentino pressentimento, acrescentou:
— Maria, quê?
— Nielsen — disse ela.
«Nevada» Jim pestanejou, dececionado.
— Nesse caso, és filha de... do dono de tudo isto, não é verdade?
Ela assentiu, um pouco divertida, no íntimo, ante a súbita confusão do rapaz.
— Agora — falou a jovem, de novo — permite-me que lhe pergunte o seu nome? Creio que o seu dever era apresentar-se primeiro...
— Chamam-me muitas coisas — replicou ele, voltando a ser o homem cínico que entrara na cozinha. — Por exemplo, agora há uma temporada que me chamam «Nevada». Em diversas ocasiões dei pelo nome de «Texas». Outras vezes pelos de «Risonho», «Kid», «Arizona»... E, após um segundo de pausa, acrescentou, com um brilho estranho nos seus frios olhos azuis: — Em certa ocasião chamaram-me «Colorado»...
A jovem voltou-se, com um prato cheio de comida, e depositou-o numa mesa, ao lado do rapaz.
— E como deseja que o chamem?
— «Nevada» — replicou ele, sorrindo. — Gosto mais deste nome do que de qualquer outro. Ainda que, dos teus lábios, prefira ouvir o meu verdadeiro nome: Jim.
Pegou numa colher e começou a comer com verdadeiro apetite. Ela observava-o com curiosidade.
— Quando vem o teu pai? — perguntou ele, com a boca cheia, olhando para o prato.
— Não sei. Foi a Dodge City com uma manada de reses para vender. Pode demorar-se ainda uma semana ou um mês. Depende.
Fez-se um silêncio. Maria Nielsen permaneceu de pé, diante de «Nevada», observando-o detidamente. Por fim disse:
— Qual é o seu apelido? Porque não creio que se chame Jim, apenas, sem mais nada...
«Nevada» olhou-a por cima do prato e acabou de comer o que tinha na boca. Uma ideia súbita atravessou-lhe a mente, e dispôs-se a pô-la em prática sem pensar mais. Pousou a colher junto do prato e limpou a boca com um guardanapo. Depois, disse:
— O meu apelido? Não tenho nenhum. Nasci com o nome de Jim, somente.
— Mas você... Você tem que... — a rapariga interrompeu-se, temendo haver começado a tocar num ponto desagradável ao seu interlocutor.
— Queres dizer, jóia — continuou ele — que devo ter vindo ao mundo com um pai e uma mãe, não é verdade? Pois bem: não foi assim. Nasci de uns coiotes, lá longe, na Grande Pradaria dos «sioux».
— Está a brincar comigo?
— Oh! Não! Deus me livre de fazer tal coisa com uma rapariga tão bonita como tu...
Calou-se durante um segundo e acrescentou, dando forma mais verosímil às suas explicações:
— A verdade é que as minhas primeiras recordações da infância datam do tempo em que vivi com os índios. Creio que a minha meninice foi demasiado triste para que te aborreça com a sua história. O certo é que não me lembro de haver nunca tido pai e mãe. Os meus amigos e companheiros de brincadeiras daquela época foram os cães que pululavam em torno das tendas dos «sioux»...
— Mas você não é índio...
— Também acho... — replicou ele, sorrindo.
Calou-se e começou a fazer um cigarro, tranquilamente.
— Quer continuar a contar-me a sua vida? — pediu ela, com voz ansiosa. — Não tem ideia de como caiu nas mãos dos selvagens?
«Nevada» Jim acabou de acender o cigarro e fitou-a nos olhos através do fumo. Adivinhou no mesmo instante o que Maria Nielsen pensava, isto é, precisamente o que desejara lhe ocorresse. Mas ao ver as suas límpidas pupilas brilhantes de ansiedade e de incredulidade, arrependeu-se de ter introduzido naquela cândida alma a esperança de haver encontrado o irmão perdido.
Contudo, era tarde para voltar atrás. Esforçou-se por dar ao diálogo novo rumo e, com o seu sempiterno ar de indiferença, disse:
— Não te parece que já falámos bastante de mim? Por outro lado, desagrada-me recordar tempos passados. Falemos agora de ti. Sempre viveste neste rancho tão belo?
— Não, dantes não era assim — replicou ela enfadada pela brusca mudança de conversa. — O paizinho encontrou um grande jazigo aurífero nas Montanhas Negras e explorou-o até ao último grão de pó. Pudemos ampliar o nosso antigo rancho, até convertê-lo no que é hoje...
Deteve-se um instante e dirigiu-se precipitadamente para a porta da cozinha:
— Volto já — disse. — Espere um minuto, por favor. Não se vá embora.
«Nevada» Jim viu a rapariga desaparecer, veloz. Onde demónio iria? Começaria a crer que aparecera o irmão perdido? Agitou-se, inquieto, na sua cadeira e olhou para a porta pela qual acabava de desaparecer Maria.
— Em bom sarilho meti esta pobre rapariga! — exclamou.
Depois sorriu e, após encolher os ombros, recostou-se no assento, cujo espaldar encostou à parede. Deitando o chapéu sobre os olhos, dispôs-se a esperar que ela regressasse.
Vinte minutos mais tarde, Maria Nielsen voltou à cozinha.
— Venha. Venha comigo — pediu-lhe, mal entrou. «Nevada» Jim mexeu-se na cadeira.
— Aonde? — perguntou-lhe tranquilamente.
— Não veio à procura de trabalho? — notou-lhe ela, com voz agitada. — Pois bem: na ausência de meu pai, pode tratar do assunto com a mãezinha. Acabo de falarlhe de si e quero que vá vê-la... Temos falta de homens no rancho, agora, compreende?
— Perfeitamente.
«Nevada» Jim seguiu a rapariga. Num pátio interior do edifício principal, adornado em estilo mexicano, Maria Nielsen deteve-se e virou-se para o jovem.
— A mãezinha está paralítica desde há tempo, sabe? Além disso, não goza de boa saúde... Gostaria... gostaria que você fosse com ela... um pouco... cortês.
— Compreendo. Falarei o menos possível, para não dizer asneiras. Não é isto que quer?
— Mais ou menos — sorriu ela. — Desejo que se não mostre tão... pouco amável como comigo.
Sem esperar resposta, Maria aproximou-se lentamente de uma porta do pátio. «Nevada» Jim seguiu-a. Ela abriu e entrou.
— Passe, Jim — disse; e, dirigindo-se a alguém de dentro, acrescentou: — Mãezinha, este é o rapaz de que te falei.
Quando os olhos de «Nevada» se acostumaram à penumbra do local, viram uma mulher que jazia numa cadeira de inválidos. A seu lado, de pé, estava já Maria, que lhe sorriu, animando-o a aproximar-se.
O jovem avançou alguns passos, contrariado de estar ali. Começava a repugnar-lhe o que estava a fazer. Naquele momento, teria preferido encontrar-se a muitas centenas de milhas daquela sala. Custava-lhe ímprobo trabalho continuar aquela comédia.
— Como está, minha senhora? — perguntou com dez.
Quis prosseguir, adotando o mesmo ar de indiferença que sempre o havia caracterizado, mas não pôde. Começou a tremer. Os olhos da senhora Nielsen eram iguais aos da rapariga: azuis, luminosos, tão límpidos e cristalinos que «Nevada» conseguiu ver através deles a alma da mulher. O seu cabelo era também negro, como o da filha. No rosto da inválida notavam-se claramente os traços da sua ascendência mexicana.
— Vens então à procura de trabalho? — falou, com voz suave, a senhora Nielsen.
— Exactamente, minha senhora.
«Nevada» Jim sentia pesar-lhe agora o par de revólveres que tinha à cintura. Parecia-lhe uma espécie de sacrilégio ter entrado naquela sala com eles à vista. Começou a sentir uma inexplicável devoção pela mulher que tinha na sua frente. Estaria a apiedar-se dela pelo muito que devia ter sofrido desde que lhe roubaram o filho? Ou seria, talvez, por já estar vendo no seu pensamento a terrível deceção que receberia quando se descobrisse a verdade?
— Chamas-te Jim, não é verdade?
«Nevada» assentiu.
— Quantos anos tens?
— Vinte e dois.
— Suponho que conhecerás o ofício de vaqueiro. O meu marido está ausente e levou consigo a maior parte dos rapazes. Agora temos falta deles e...
A senhora Nielsen, enquanto falava, observou com doçura o corpo esbelto que se erguia diante de si. Deteve os seus olhos no lenço vermelho que o jovem tinha ao pescoço. «Nevada» Jim voltou a estremecer ante o invisível contacto daquele olhar.
— Aproxima-te mais, Jim, se não te importas — murmurou a inválida. •
Ele avançou dois passos e ficou a poucas polegadas ao corpo da senhora Nielsen.
A mulher ergueu a mão direita, pálida e transparente, e aproximou-a do lenço. Devagar, foi descobrindo o pescoço do rapaz. A branca cicatriz em forma de estrela que lhe ficara desde a noite do assalto à diligência tornou--se visível. A mão que pegava no pano estremeceu quase impercetivelmente. «Nevada» Jim permaneceu imóvel, com todos os seus músculos tensos, incapaz já de prosseguir por mais tempo aquela repugnante farsa.
Houve um curto silêncio, durante o qual os mais desencontrados pensamentos desfilaram pela mente dos três reunidos. Por fim, rompeu-o a voz da senhora Nielsen:
— Podes ficar, Jim disse, — com voz que procurou tornar serena. — Maria apresentar-te-á ao resto dos vaqueiros.
Sem acrescentar palavra, «Nevada» girou sobre os calcanhares e transpôs a porta a grandes passadas, .a caminho do pátio. Já nele, parou indeciso, olhando à sua volta. Grossas gotas de suor começaram a cair-lhe pelo rosto.
— Raios!... — praguejou entre dentes. — Nunca pensei que...
Em breve ouviu atrás de si, procedente da sala que acabava de abandonar, a voz da senhora Nielsen, que exclamava:
— É ele, Maria, não há dúvida! É ele!... Bendito. seja Deus!
Não procurou continuar a escutar. Saiu velozmente do pátio, sem saber para onde dirigir-se. Estava a achar-se ridículo no meio de tudo aquilo. Ele, um homem duro, de alma curtida pelo constante contacto de seres sem sentimentos, chegara ao «Três Cruzes» disposto a matar um homem; e agora encontrava-se com o terrível problema da sua consciência, que lhe gritava como jamais fizera.
Que diabos lhe acontecera? Porquê tais escrúpulos na sua mente?
Aproximou-se do tanque dos cavalos e submergiu a cabeça nele, a fim de serenar o seu confuso cérebro. Enquanto a água lhe refrescava a fronte, tomou uma decisão: sairia do rancho logo que selasse o cavalo. E nunca mais voltaria a pisar aquele sítio. Depois procuraria outra solução para acabar de cumprir a sua vingança.
Mas quando se endireitou viu diante de si o rosto de Maria Nielsen, que lhe sorria. Havia tanta doçura e tanto amor oculto nas profundezas dos seus belos e límpidos olhos, que Nevada Jim compreendeu então que jamais poderia deixar de vê-los, ainda que fugisse para os confins do mundo.
A seguir dirigiu-se para a cozinha, situado numa das pontas do edifício.
Ao aproximar-se da porta, distinguiu as costas de uma mulher que, a julgar pela sua esbelta e graciosa figura, devia ser muito nova. Uma cascata de compridos e negríssimos cabelos caía-lhe pelos ombros, convertida numa grande trança.
— Há de comer? — perguntou.
A rapariga virou-se, sobressaltada. Uns belos olhos de um azul intenso, que contrastavam agradavelmente com a sua tez morena, fitaram o intruso, assustados por um segundo. Mas um momento depois, a jovem já se tinha refeito.
Coube a vez a «Nevada» Jim de sobressaltar-se, ao contemplar o maravilhoso rosto dela. Por Deus, que bonita e formosa mulher!
Convertendo o seu pensamento em palavras, disse:
— De que parte do céu caíste, minha jóia?
Ela, ao contrário do que Nevada esperava, sorriu satisfeita.
— Descasque essas batatas — ordenou, pondo-se séria de repente; e apontou com um gesto um balde cheio a deitar por fora de grandes tubérculos. — Depois comerá.
«Nevada» Jim entrou com ar displicente e tomou lugar numa cadeira, às cavaleiras, perto da rapariga. Contemplou-a fixamente, como que extasiado, e sorrindo por sua vez, enquanto ela continuava a trabalhar junto das tachos.
— Se quer comer, descasque essas batatas — repetiu a jovem.
— Fugiu-me o apetite, riqueza... — murmurou ele — A propósito, como te chamas?
Ela virou-se e olhou-o no rosto.
— Procura trabalho, não é verdade? — perguntou, sem fazer caso do que ele dissera. — Pois bem: o capataz não está e meu pai também não. Portanto, terá de esperar que regressem. Agora vou chamar a...
— Um momento, jóia. Como te chamas... por favor? — pediu «Nevada», desta vez em tom menos cínico.
A rapariga guardou silêncio durante um momento. Por fim, disse:
— Maria.
— Maria — repetiu ele, parecendo acariciar o nome ao pronunciá-lo.
De súbito, dando ouvidos a um repentino pressentimento, acrescentou:
— Maria, quê?
— Nielsen — disse ela.
«Nevada» Jim pestanejou, dececionado.
— Nesse caso, és filha de... do dono de tudo isto, não é verdade?
Ela assentiu, um pouco divertida, no íntimo, ante a súbita confusão do rapaz.
— Agora — falou a jovem, de novo — permite-me que lhe pergunte o seu nome? Creio que o seu dever era apresentar-se primeiro...
— Chamam-me muitas coisas — replicou ele, voltando a ser o homem cínico que entrara na cozinha. — Por exemplo, agora há uma temporada que me chamam «Nevada». Em diversas ocasiões dei pelo nome de «Texas». Outras vezes pelos de «Risonho», «Kid», «Arizona»... E, após um segundo de pausa, acrescentou, com um brilho estranho nos seus frios olhos azuis: — Em certa ocasião chamaram-me «Colorado»...
A jovem voltou-se, com um prato cheio de comida, e depositou-o numa mesa, ao lado do rapaz.
— E como deseja que o chamem?
— «Nevada» — replicou ele, sorrindo. — Gosto mais deste nome do que de qualquer outro. Ainda que, dos teus lábios, prefira ouvir o meu verdadeiro nome: Jim.
Pegou numa colher e começou a comer com verdadeiro apetite. Ela observava-o com curiosidade.
— Quando vem o teu pai? — perguntou ele, com a boca cheia, olhando para o prato.
— Não sei. Foi a Dodge City com uma manada de reses para vender. Pode demorar-se ainda uma semana ou um mês. Depende.
Fez-se um silêncio. Maria Nielsen permaneceu de pé, diante de «Nevada», observando-o detidamente. Por fim disse:
— Qual é o seu apelido? Porque não creio que se chame Jim, apenas, sem mais nada...
«Nevada» olhou-a por cima do prato e acabou de comer o que tinha na boca. Uma ideia súbita atravessou-lhe a mente, e dispôs-se a pô-la em prática sem pensar mais. Pousou a colher junto do prato e limpou a boca com um guardanapo. Depois, disse:
— O meu apelido? Não tenho nenhum. Nasci com o nome de Jim, somente.
— Mas você... Você tem que... — a rapariga interrompeu-se, temendo haver começado a tocar num ponto desagradável ao seu interlocutor.
— Queres dizer, jóia — continuou ele — que devo ter vindo ao mundo com um pai e uma mãe, não é verdade? Pois bem: não foi assim. Nasci de uns coiotes, lá longe, na Grande Pradaria dos «sioux».
— Está a brincar comigo?
— Oh! Não! Deus me livre de fazer tal coisa com uma rapariga tão bonita como tu...
Calou-se durante um segundo e acrescentou, dando forma mais verosímil às suas explicações:
— A verdade é que as minhas primeiras recordações da infância datam do tempo em que vivi com os índios. Creio que a minha meninice foi demasiado triste para que te aborreça com a sua história. O certo é que não me lembro de haver nunca tido pai e mãe. Os meus amigos e companheiros de brincadeiras daquela época foram os cães que pululavam em torno das tendas dos «sioux»...
— Mas você não é índio...
— Também acho... — replicou ele, sorrindo.
Calou-se e começou a fazer um cigarro, tranquilamente.
— Quer continuar a contar-me a sua vida? — pediu ela, com voz ansiosa. — Não tem ideia de como caiu nas mãos dos selvagens?
«Nevada» Jim acabou de acender o cigarro e fitou-a nos olhos através do fumo. Adivinhou no mesmo instante o que Maria Nielsen pensava, isto é, precisamente o que desejara lhe ocorresse. Mas ao ver as suas límpidas pupilas brilhantes de ansiedade e de incredulidade, arrependeu-se de ter introduzido naquela cândida alma a esperança de haver encontrado o irmão perdido.
Contudo, era tarde para voltar atrás. Esforçou-se por dar ao diálogo novo rumo e, com o seu sempiterno ar de indiferença, disse:
— Não te parece que já falámos bastante de mim? Por outro lado, desagrada-me recordar tempos passados. Falemos agora de ti. Sempre viveste neste rancho tão belo?
— Não, dantes não era assim — replicou ela enfadada pela brusca mudança de conversa. — O paizinho encontrou um grande jazigo aurífero nas Montanhas Negras e explorou-o até ao último grão de pó. Pudemos ampliar o nosso antigo rancho, até convertê-lo no que é hoje...
Deteve-se um instante e dirigiu-se precipitadamente para a porta da cozinha:
— Volto já — disse. — Espere um minuto, por favor. Não se vá embora.
«Nevada» Jim viu a rapariga desaparecer, veloz. Onde demónio iria? Começaria a crer que aparecera o irmão perdido? Agitou-se, inquieto, na sua cadeira e olhou para a porta pela qual acabava de desaparecer Maria.
— Em bom sarilho meti esta pobre rapariga! — exclamou.
Depois sorriu e, após encolher os ombros, recostou-se no assento, cujo espaldar encostou à parede. Deitando o chapéu sobre os olhos, dispôs-se a esperar que ela regressasse.
Vinte minutos mais tarde, Maria Nielsen voltou à cozinha.
— Venha. Venha comigo — pediu-lhe, mal entrou. «Nevada» Jim mexeu-se na cadeira.
— Aonde? — perguntou-lhe tranquilamente.
— Não veio à procura de trabalho? — notou-lhe ela, com voz agitada. — Pois bem: na ausência de meu pai, pode tratar do assunto com a mãezinha. Acabo de falarlhe de si e quero que vá vê-la... Temos falta de homens no rancho, agora, compreende?
— Perfeitamente.
«Nevada» Jim seguiu a rapariga. Num pátio interior do edifício principal, adornado em estilo mexicano, Maria Nielsen deteve-se e virou-se para o jovem.
— A mãezinha está paralítica desde há tempo, sabe? Além disso, não goza de boa saúde... Gostaria... gostaria que você fosse com ela... um pouco... cortês.
— Compreendo. Falarei o menos possível, para não dizer asneiras. Não é isto que quer?
— Mais ou menos — sorriu ela. — Desejo que se não mostre tão... pouco amável como comigo.
Sem esperar resposta, Maria aproximou-se lentamente de uma porta do pátio. «Nevada» Jim seguiu-a. Ela abriu e entrou.
— Passe, Jim — disse; e, dirigindo-se a alguém de dentro, acrescentou: — Mãezinha, este é o rapaz de que te falei.
Quando os olhos de «Nevada» se acostumaram à penumbra do local, viram uma mulher que jazia numa cadeira de inválidos. A seu lado, de pé, estava já Maria, que lhe sorriu, animando-o a aproximar-se.
O jovem avançou alguns passos, contrariado de estar ali. Começava a repugnar-lhe o que estava a fazer. Naquele momento, teria preferido encontrar-se a muitas centenas de milhas daquela sala. Custava-lhe ímprobo trabalho continuar aquela comédia.
— Como está, minha senhora? — perguntou com dez.
Quis prosseguir, adotando o mesmo ar de indiferença que sempre o havia caracterizado, mas não pôde. Começou a tremer. Os olhos da senhora Nielsen eram iguais aos da rapariga: azuis, luminosos, tão límpidos e cristalinos que «Nevada» conseguiu ver através deles a alma da mulher. O seu cabelo era também negro, como o da filha. No rosto da inválida notavam-se claramente os traços da sua ascendência mexicana.
— Vens então à procura de trabalho? — falou, com voz suave, a senhora Nielsen.
— Exactamente, minha senhora.
«Nevada» Jim sentia pesar-lhe agora o par de revólveres que tinha à cintura. Parecia-lhe uma espécie de sacrilégio ter entrado naquela sala com eles à vista. Começou a sentir uma inexplicável devoção pela mulher que tinha na sua frente. Estaria a apiedar-se dela pelo muito que devia ter sofrido desde que lhe roubaram o filho? Ou seria, talvez, por já estar vendo no seu pensamento a terrível deceção que receberia quando se descobrisse a verdade?
— Chamas-te Jim, não é verdade?
«Nevada» assentiu.
— Quantos anos tens?
— Vinte e dois.
— Suponho que conhecerás o ofício de vaqueiro. O meu marido está ausente e levou consigo a maior parte dos rapazes. Agora temos falta deles e...
A senhora Nielsen, enquanto falava, observou com doçura o corpo esbelto que se erguia diante de si. Deteve os seus olhos no lenço vermelho que o jovem tinha ao pescoço. «Nevada» Jim voltou a estremecer ante o invisível contacto daquele olhar.
— Aproxima-te mais, Jim, se não te importas — murmurou a inválida. •
Ele avançou dois passos e ficou a poucas polegadas ao corpo da senhora Nielsen.
A mulher ergueu a mão direita, pálida e transparente, e aproximou-a do lenço. Devagar, foi descobrindo o pescoço do rapaz. A branca cicatriz em forma de estrela que lhe ficara desde a noite do assalto à diligência tornou--se visível. A mão que pegava no pano estremeceu quase impercetivelmente. «Nevada» Jim permaneceu imóvel, com todos os seus músculos tensos, incapaz já de prosseguir por mais tempo aquela repugnante farsa.
Houve um curto silêncio, durante o qual os mais desencontrados pensamentos desfilaram pela mente dos três reunidos. Por fim, rompeu-o a voz da senhora Nielsen:
— Podes ficar, Jim disse, — com voz que procurou tornar serena. — Maria apresentar-te-á ao resto dos vaqueiros.
Sem acrescentar palavra, «Nevada» girou sobre os calcanhares e transpôs a porta a grandes passadas, .a caminho do pátio. Já nele, parou indeciso, olhando à sua volta. Grossas gotas de suor começaram a cair-lhe pelo rosto.
— Raios!... — praguejou entre dentes. — Nunca pensei que...
Em breve ouviu atrás de si, procedente da sala que acabava de abandonar, a voz da senhora Nielsen, que exclamava:
— É ele, Maria, não há dúvida! É ele!... Bendito. seja Deus!
Não procurou continuar a escutar. Saiu velozmente do pátio, sem saber para onde dirigir-se. Estava a achar-se ridículo no meio de tudo aquilo. Ele, um homem duro, de alma curtida pelo constante contacto de seres sem sentimentos, chegara ao «Três Cruzes» disposto a matar um homem; e agora encontrava-se com o terrível problema da sua consciência, que lhe gritava como jamais fizera.
Que diabos lhe acontecera? Porquê tais escrúpulos na sua mente?
Aproximou-se do tanque dos cavalos e submergiu a cabeça nele, a fim de serenar o seu confuso cérebro. Enquanto a água lhe refrescava a fronte, tomou uma decisão: sairia do rancho logo que selasse o cavalo. E nunca mais voltaria a pisar aquele sítio. Depois procuraria outra solução para acabar de cumprir a sua vingança.
Mas quando se endireitou viu diante de si o rosto de Maria Nielsen, que lhe sorria. Havia tanta doçura e tanto amor oculto nas profundezas dos seus belos e límpidos olhos, que Nevada Jim compreendeu então que jamais poderia deixar de vê-los, ainda que fugisse para os confins do mundo.
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