BUF118. CAP X

A luz vinha do escritório e deixava na penumbra a maior parte do salão principal.
— Vamos ao escritório, Ted — disse Walter.
Mas o jovem segurou-o por um braço.
— Não há tempo para isso — declarou. — Dentro de poucos minutos, meus irmãos estarão aqui, a frente de muitos homens da povoação. Vem impedir que se realize o casamento e afastar Castile do caminho.
— Que estas a dizer?
Ted notou que o velho ficara preocupado e ouviu o suspiro entrecortado de Castile.
— O que ouviste. Desta vez a tua argúcia não te servirá de nada.
— Não sei a que te referes.
— Poise bem claro. Já sabem do caso da herança e expulsaram da povoação todos os «zunhis».
Desta vez o dono do rancho tremeu, mas de cólera.
— Quem lhes disse? Foste tu?
— Nao. Embora, de qualquer modo, fosse essa a minha intenção. Mas Hub antecipou-se-me, depois de escutar arras da porta o que propuseste a Castile. E teve a coragem de atravessar a pé, debaixo da tormenta, toda a distância que vai daqui a povoação, para avisá-los.
— Maldito seja esse verme miserável!
Ted estava cansado. Nas poucas horas que tinham transcorrido desde o seu regresso de Kansas, onde fora levar o gado, vivera mais intensamente do que nos vinte e dois anos anteriores. Tão depressa que era possível que estivesse j a perto do fim.
— É estúpido que recrimines quem quer que seja — interrompeu com dureza, com um acento metálico que a si próprio impressionou. — A única coisa que ha a fazer organizar a defesa o melhor possivel e prepararmo-nos para vender caro a pele.
— Quebrarei os ossos a esse maldito! — continuou Walter, dando largas ao seu furor. — Atraiçoou-me duas vezes esta noite.
— Já lhe quebraste um osso — declarou Ted, com a mesma gelada intenção. — E talvez não tenha feito mais do que cobrar-se dessa divida. Ser pai não consiste em dispor dos ossos dos filhos.
— Ted!
— Ouve bem isto, velho: tudo o que acontece é por tua culpa. Atá ao fim quiseste brincar com as outras pessoas, utiliza-las em teu proveito. E a única coisa que conseguiste foi que esses pobres índios fossem corridos das suas cabanas onde, mal ou bem, iam vivendo. Se dentro de pouco tempo isto arder por todos os cantos...
— Não deves falar-me assim!
— Por que nao? Sempre contaste com a minha adesão para todos os teus pianos. Esta noite, quando vim aqui pela primeira vez, quase lograste convencer-me. Mas agora sei o que escondias na manga. Sabes o que aconteceu a Tagus, o teu emissário junto dos «zunhis»?
Pressentiu, mais do que viu, dilatarem-se os olhos de Castile.
— Enviaste-o com a astuta intenção de que mobilizasse a teu favor esses miseráveis, para opô-los a Roland e aos outros. Depois, ser-te-ia fácil enganar os sobreviventes da luta. Mas de momento conseguirias que se batessem com os homens brancos de Sulphur Valley, entusiasmando-os com a ideia de que voltariam a ser donos das suas velhas terras.
— Não o fiz por isso, Ted, mas sim para...
— Mentira! A ela também querias enganá-la com essa promessa. Mas sabias que assim que a gente da povoação soubesse de semelhante contrato procuraria impedi-lo. E tu tinhas-lhes preparado os peles-vermelhas, para que se matassem mutuamente.
— Não é verdade.
Castile agarrou Ted por uma manga, que se virou para ela.
— Que aconteceu ao meu irmão, Ted? — perguntou com a voz alterada.
Ted sentiu um baque no coração. Queria suavizar a revelação, mas verificou que já estava a proferir palavras duras como o aço.
— Sovaram-no, Castile, sovaram-no como a um cão, até partirem-lhe todos os ossos. Não pararam enquanto não o converteram num monte de came triturada.
Ela retrocedeu com um estranho gemido, como se se lhe tivesse quebrado qualquer coisa dentro do peito.
— Não! não é possivel.
— É, sim. Presenciei tudo. É tao verdade como o teu povo morrer no deserto e os seus corpos serem devorados pelos chacais e pelos abutres. E a tua obra, pai.
E apontou acusador e desapiedado para o velho.
— Não é verdade, Ted, não é verdade — defendeu-se Walter, que parecia ter envelhecido terrivelmente. — Tudo quanto dizes é mentira. Pactuaste com os teus irmãos, viraste-te contra mim, também. Tu, o único em quem confiava!
Um trovão fez estremecer as paredes. Walter correu para o escritório.
— Tu não deves atraiçoar-me, Ted; tu nao! — gritava. E largou a rir de repente; como se tivesse endoidecido. — O velho Walter Boyce ainda é o mais forte!
— Está louco — murmurou Ted.
E aproximou-se de Castile, que soluçava sem lágrimas, com uma angústia seca, destruidora.
— Vamos, Castile — disse. — Se permanecermos aqui não haverá salvação para ninguém.
Ela contemplava-o, desvairada, apertando o peito com as mãos.
— Voltou a enganar-nos — ouviu-a dizer Ted. — Vendeu-nos outra vez. E eu que julgava...
— Castile, esquece-te disso. Está tudo podre. Uma nova vida se nos oferece fora daqui. Por que...?
A sua voz foi abafada por um trovão mais forte. O aposento iluminou-se com um clarão alaranjado, azul e branco. As janelas abriram-se, empurradas pelo vento. Ted atraiu a «zunhi» ao peito e abraçou-a.
— Vamos, Castile, vamos — rogou com ardor. — Não devemos misturar-nos nesta suja história. Eu sei por que acedeste aos desejos do velho, de casar com ele. Mas os outros não consentirão, nunca consentirão que os teus se apoderem de novo desta terra...
Um novo clarão tornou a envolve-los, e o fragor celestial ensurdeceu-os por completo. Ted foi o primeiro a ver o pai, que empunhava uma espingarda de dois canos, uma velha «Henry» que utilizara contra os ursos. Irnpressionou-o o ar desvairado do velho.
Aproximou-se deles, caminhando quase em bicos de pés, e fitou-os como se na realidade fossem outras pessoas.
— Traidores! — exclamou em voz baixa, mas sem cólera.— Traidores. Era isso que tramavam, hem? Tu, o único filho em quem confiava, e tu, Castile, que...
— Estás enganado, velho — replicou-lhe Ted com intensidade, e pôs-se diante dele. — Não houve nenhuma traição. Castile e eu amávamo-nos, muito antes de se te meter na cabeça essa estúpida ideia de casares com ela.
Walter contemplou-os com o mesmo ar de doloroso alheamento. E quando menos Ted esperava, desatou a chorar, num lamerito infantil, absurdo. A espingarda escapou-se-lhe das mãos e rolou pelo chão.
— Agora já não tenho nada, nada... — repetia Walter, por entre terríveis soluços. — Deus do céu, todos me abandonam!
Ted comoveu-se. Apercebeu-se da grande tragedia do, pai, do que representava para ele aquela descoberta. A verdade era que a velhice e a solidão se haviam infiltrado no seu forte temperamento e que agiam como Um insidioso e lento veneno que lhe deixava, dentro do corpo decrépito, um cérebro que não se resignava a perder o seu papel preponderante.
O jovem observou Castile e compreendeu que ela pensava o mesmo. Não podia ser verdade que Walter tivesse planeado a intriga de oferecer as suas terras aos índios para opô-los aos brancos da povoação. Provavelmente, fora Um desesperado recurso para reter Castile junto de si.
— Pai — disse, comovido, aproximando-se dele.
A tormenta abafou-lhe a voz. Um estampido pavoroso, brutal, que sacudiu os alicerces, que deu a impressão de rachar as paredes e de estalar o solo, envolveu-os.
Ted viu o pai cair contra a parede e depois por terra, onde ficou imóvel e rígido. Castile também tombou no solo. O aposento encheu-se de um acre cheiro a queimado; e, por segundos, um espectro azulado bailou na retina de quantos se encontravam ali dentro.
— Foi na torre! — gritou o chinês, que se agachara junto da porta.
Ted correu para o velho e inclinou-se sobre ele. Estava desmaiado. Com grande esforço conseguiu pôr-se em pé e virou-se para Castile. Mas imobilizou-se.
Uma voz dura, sarcástica, estalou-lhe aos ouvidos. Acabou de virar-se lentamente, a fim de olhar quem falava, embora já soubesse de quem se tratava.
— Pelo que vejo, irmão, não conseguiram chegar a acordo.
Roland, o primogénito, com a sua alta estatura e o seu rosto magro, retangular, onde brilhavam, carregados de cólera, os olhos muito juntos do nariz. Nenhuma compreensão se podia esperar dele.
Atrás, espreitavam Sil e Waco. E mais ao fundo Hub, com um brilho demente, apavorado, nos olhos claros. E Dany. E Overton. Os abutres tinham andado bem e com rapidez, e haviam-nos apanhado em plena discussão.
O mais velho dos Boyce deu vários passos e parou a observar o pai. Depois, encarou o irmão.
— És um porco, Ted — sibilou. — Nós, ao menos, viemos reclamar qualquer coisa que julgarnos nossa e justa. Mas nunca... nunca... E tudo por causa dessa perdida.
— Estás enganado, Roland! — exclamou Ted, com ira. — Não é o que pensas. Ele é que...
Mas Roland já não o ouvia. Afastara-se dele e avançava para o grupo de homens de Sulphur Valley. Esteve a falar com eles durante um momento e em seguida voltou a pôr-se em marcha, encabeçando o grupo. Cravaram os olhos em Castile.
— Bom, rapariga — disse Roland, com voz gelada. Naquela ocasiao não se deixava arrastar pelo furor, o que tornava a sua atitude ainda mais sinistra. — Este negócio está terminado. Não nos agrada enforcar uma preciosidade como tu, mas não temos outro remédio. Vamos!
Várias maos se estenderam para Castile, que soltou um grito rouco e quis afastar-se. Ted mexeu-se também e colocou-se diante dela.
— Não sejas louco, Ted! — preveniu-o Roland. — Não tentes impedir-nos.
— Deixa-a, Roland! — exclamou com ardor o irmão. — Estás a praticar um monstruoso erro, e arrepender-te-ás se levares a cabo o que pretendes.
— Qual erro? Acaso não está tudo perfeitamente claro? Esta maldita enlouqueceu-os, ao velho e a ti. Mas eu estava disposto, nota bem, a respeitar a tua atitude. Até mesmo permiti que partisses e viesses aqui prevenir o velho, mas não esperava que fizesses uma coisa dessas. Agora acho que também é possível que tenham sido os dois que urdiram todo este enredo. Não julgo o nosso pai tao louco que fosse capaz de fazer de sua própria vontade essa partilha...
As palavras saíram em torrente pelos lábios do primogénito. Ted quis em várias ocasiões interrompe-lo, mas não o conseguiu.
— Juro-te, Roland — conseguiu dizer, por fim — que o velho nada sabia das nossas relações. Foi tudo uma maldita confusão. E quanto ao que se passou...
— Vamos, deixa-te de inventar histórias! — Interrompeu-o com ferocidade o outro. — E evidente o que sucedeu. Deve ter compreendido que o enganavam e revoltou--se contra ti. E não hesitaste em... Quase sinto vontade de matar-te. Ao teu pai…
Aquilo seria cómico noutras circunstâncias; mas extraordinário era que Ted sabia que Roland falava com sinceridade. Julgava estar no direito de vir à frente de um grupo de homens armados impedir o que imaginava ser uma loucura do pai. Mas afigurava-se-lhe monstruoso que outro membro do clã tivesse feito frente ao velho.
Fez um sinal e vários homens rodearam o jovem e separaram-no da «zunhi». E outros agarraram, por fim, esta, que ficara de súbito paralisada, e empurraram-na para a saída.
A tormenta interrompeu-se também, como se o céu contivesse a respiração e se preparasse para um ataque final, definitivo.
Houve uns segundos de angústia. Ted fechou os olhos. Seria inútil tentar impedir a execução. Da porta, ao abrir os olhos de novo, recebeu o olhar suplicante, carregado de censuras, que lhe dirigiu Castile.
— Vamos! — Insistiu Roland, de quem parecia ter-se apoderado uma grande pressa.
A tormenta reiniciou o seu concerto. E as pessoas igualmente entraram em louca atividade. Faltava, no entanto, o último pormenor que encheria Ted Boyce de angústia. Roland virou-se para observá-lo e decretou:
— Tragam-no também. Servir-lhe-á de exemplo presenciar o espetáculo.
Obedecendo as suas ordens, obrigaram Ted a caminhar na sua frente. Ninguém se ocupou do velho, que continuava inconsciente, como se estivesse morto, como talvez pensassem os filhos e os habitantes de Sulphur Valley que se tinham reunido no rancho.

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