KNS074. CAP VII. A cantora de voz rouca e pastosa

— Com todos os diabos! Esses sim, é que eram tempos difíceis! Digo-lhe que...
O som de duas detonações quase simultâneas cortou a acalorada narração do barbeiro, que durante um momento ficou com a tesoura no ar e no momento seguinte correu para a porta, a ver o que tinha acontecido.
Roy olhou-se ao espelho e, vendo que só faltava acertar as patilhas, coisa que ele mesmo podia fazer com a navalha, pôs-se em pé e libertou-se da toalha que tinha sobre os ombros e em volta do pescoço.
— Quanto lhe devo?... — perguntou, dirigindo-se para a porta e tirando umas moedas do bolso.
O barbeiro voltou para ele a sua cara magra, de olhos salientes e compridos bigodes, mas não pareceu tê-lo ouvido.
— Frank Slate acaba de matar Joe, um dos mais temidos pistoleiros de Herbert Coe... — exclamou ele, vibrante de excitação.
Roy pegou na mão do homem, pondo sobre ela as moedas que acabara de tirar do bolso, e no mesmo instante ouviu um brado agudo.
Pulou como um raio, e antes de ver sequer o que estava a acontecer, correu para «Dark» e empunhou a espingarda, arrancando-a bruscamente do coldre da sela.
Calculando a distância a que haviam soado os tiros e o brado, era evidente que, se os seus amigos precisavam da sua ajuda imediata, não podia prestá-la com os revólveres. Por isso, antes de mais nada, tinha ido buscar a arma que permitiria a sua imediata e eficaz intervenção.
Já com a espingarda em punho, olhou ao longo da rua e a primeira coisa que viu foi o vulto enorme de Nick, que naquele momento dobrava uma esquina e se encobria com ela numa atitude suspeita.
Com efeito, logo a seguir viu-o empunhar o revólver e, espreitando com precaução, apontá-lo para Frank Slate, que naquele momento atravessava a rua levando Allice Nason pelo braço.
Roy levou a espingarda à cara e fez fogo sem a menor hesitação.
Apoiado como estava à parede, Nick pareceu incrustar-se nela ao receber o choque da bala da espingarda. Deixou pender o braço armado e olhou para o sítio de onde tinham feito fogo.
A vista começava a enevoar-se-lhe rapidamente, mas mesmo assim reconheceu o homem da espingarda.
— Maldi I...
Caiu de joelhos, parecendo-lhe que estava a anoitecer rapidamente. E com a chegada da escuridão notou a presença de qualquer coisa enorme, monstruosa, que parecia latejar muito perto. Sentia um ardor interno, como se uma brasa ardente estivesse a queimar-lhe as entranhas, mas embora a dor fosse intensa não podia comparar-se com a angústia, o medo espantoso de alguma coisa desconhecida, horrível, que ele não podia ver mas cuja presença sentia com espantosa nitidez. E essa coisa arrastava-o, empurrava-o para um abismo sem fundo. Gritou desesperadamente, apavoradamente, no instante em que dava o mergulho na imensidão. Ninguém ouviu aquele grito. O corpo enorme de Nick caiu de bruços, sem outro som além do baque surdo sobre as tábuas sujas do passeio.
Roy avançava pelo meio da rua, com a espingarda pronta para fazer fogo, ao mesmo tempo que Frank, que se havia separado da noiva, e Jay, tomavam posições para prevenir e repelir qualquer nova agressão possível.
A rua ficara completamente deserta, mas assim mesmo era difícil prever e anular um ataque traiçoeiro, visto que a proximidade da noite punha sombras em todas as esquinas e em todos os portais.
No entanto não pareceu que qualquer perigo ameaçasse os três companheiros, que se reuniram sem que surgissem novas complicações.
Ally correu de novo para junto de Frank, segurando-o por um braço.
— Venham a minha casa...— pediu, olhando angustiada para um e para outro lado da rua. — Ali estarão a salvo.
— É melhor... — concordou Slate. — Pelo menos enquanto não soubermos se Beasley ou algum outro da quadrilha de Coe andam por aqui.
Os seus dois companheiros não fizeram qualquer objeção e seguiram sem deixar de vigiar em volta.
— Boa limpeza, rapazes... — disse Elihu Nason que, atraído pelos tiros, aparecera à porta do armazém. — Onde está o resto da rapaziada do «Shoe»?
— Devem chegar de um momento para o outro... —respondeu Frank. — Ninguém tem pressa de vir antes do anoitecer, e se nós nos antecipámos foi porque Roy queria cortar o cabelo e este tamanhão insistia em que precisava de comprar não sei o quê.
— Ficarei contente quando os vir. Se os homens de Coe chegam antes, as coisas podem pôr-se feias.
— É melhor não ficarmos aqui... — disse Roy. — Se houver luta...
— Não os deixo sair... — atalhou Alice, decidida. Jantam aqui, e não admito desculpas.
— Bem, eu acho... — começou a dizer Jay, a quem o programa não parecia entusiasmar.
Alice, que ao lado dele parecia uma frágil bonequita, fulminou-o com o olhar.
— Já disse que não admito desculpas.
O rapagão encolheu-se, resignado.
— Pobre de nós, Roy... — lamentou-se ele, com um brilho de riso nos olhos cinzentos. — Vamos afogar-nos em suspiros.
Frank dardejou-lhe um olhar assassino e depois voltou-se para o pai da noiva.
— Não tenho grande coisa para oferecer a sua filha, Elihu... — disse ele, serenamente — ...mas amo-a e ela está disposta a cometer a loucura de casar comigo. Quer confiar-ma?
A larga face do gordo ferrador pareceu partir-se ao meio, num vasto sorriso.
— Sempre sonhei em tornar-me ganadeiro algum dia, rapaz... — declarou ele. — 0 mau é que não entendo grande coisa desse negócio, e não tinha um filho que me ajudasse na aventura. Por isso disse a Ally que se apressasse em agarrar um vaqueiro simpático, que pudesse transformar os meus sonhos em realidade e a mesmo tempo me desse os mais bonitos do mundo.
— Pai !... — protestou a jovem, muito corada.
Mas Elihu não fez caso dela e esfregou alegremente as mãos.
— É preciso festejar isto... — disse.— Em certa ocasião, há quinze anos, consegui umas garrafas de «Jerez» e guardei-as. São sete. Uma para o noivado, e vamos bebê-la agora. Outra para o casamento, e as restantes para festejar o nascimento de cada um dos meus netos. Já ficas a saber, Frank. Terão de ser cinco, pelo menos. Não se pode estragar nenhuma dessas preciosas garrafas.
— Farei o possível para o satisfazer... — disse Frank.
— Oh!... — exclamou Ally. E fugiu dali, vermelha até à raiz dos cabelos, perseguida pelo riso alegre dos quatro homens.
 
*
 
Os dois amigos abriram caminho entre a numerosa clientela do «Fox Case», tratando de chegar até ao balcão.
Jay, pela sua estatura, sobressaia entre todos os que os rodeavam, e Tap Roberts que, com alguns dos outros rapazes, se encontravam no extremo do balcão, perto do estrado onde a pianola e um par de músicos faziam um ruído ensurdecedor, levantou o braço, agitando o chapéu para chamar-lhes a atenção.
Como o capataz era também de uma estatura acima do comum, conseguiu facilmente ser visto pelos dois amigos.
— Está ali o velho urso... — disse Tyler. — Vamos aturá-lo um pouco mais?
— Voto a favor... — respondeu Roy. — Parece que quer convidar-nos, e tem um bom lugar. Talvez isso o torne suportável durante um bocado, apesar de ser o chefe.
Tinham de gritar para se entenderem, e Tyler desistiu, por isso, de fazer qualquer outro comentário. Dirigiram-se para onde estavam os companheiros.
— Onde está Frank?... — perguntou o capataz, berrando, quando chegaram junto dele.
— O infeliz está arrumado... — respondeu Jay, alegremente. — Vai casar-se.
— Como? Agora?... — exclamou Tap, com uma expressão de assombro.
— Homem, não! Teriam que me consultar primeiro, porque fui eu quem arranjou tudo.
O «barman» trouxe dois copos limpos, que o capataz pedira, assim que tinha avistado os dois rapazes, e encheu-os.
— Anda, bebe... — disse Tap ao jovial rapagão. — Não sei porque te dou atenção, quando falas. Quando se vê um tipo tão grande, espera-se que seja um bocado mais sério.
Donovan pegou no copo que Tap também lhe oferecia e olhou-o por momentos, pensativo.
— Não sei... — murmurou. — Depois do «Jerez» isto é um bocado explosivo...
Tyler bebeu o seu «whisky» de um trago.
— Vamos, companheiro, nada de te encolheres, agora. É preciso alegrarmo-nos.
— Não me parece que o precises... — volveu Roy, bebendo também.
— É verdade que Frank vai casar?... — perguntou o capataz.
— Completamente verdade.
— Com a filha do Elihu?
— Ah, também sabias?
— Bom, não era segredo para ninguém, que ele gostava dela. O que não se sabia era que pensasse pedi-la em casamento. É um tipo tão reservado! Isso merece um brinde, rapazes. É uma ótima pequena, e bonita a valer.
Roy não teria querido beber mais, mas não podia negar-se a brindar pela felicidade do amigo.
Alguém propôs em seguida um novo brinde, com os desejos gerais de que a linda e morena Kate Enders acabasse por corresponder ao fiel amor de Tyler. A sugestão foi feita alegremente e meio a brincar, mas Donovan também não pôde negar-se. Apreciava demais aquele esplêndido companheiro, para que não o desejasse de todo o coração.
Então, de súbito, fez-se silêncio, e uma voz pastosa e um tanto rouca, mas muito melodiosa, começou a cantar uma canção de amor.
Roy já estava embriagado nessa altura, porque o «Jerez» e o «whisky» misturados, tinham feito o seu efeito, mas assim mesmo, notou os olhares extasiados dos homens, quando a cançonetista lhes sorria, e lembrou-se de que, noutros tempos, esse espetáculo tivera o condão de o irritar.
A mulher que cantava trajava um vestido branco e verde, curto e de corpete muito justo e decotado. Os olhos masculinos não perderam esse pormenor, e os de Roy não fizeram exceção. Notou também o brilho do vestido, como refletia a luz, e pensou vagamente que seria de seda. Ele sempre tinha gostado de vestidos de seda.
A voz cantou três canções, três baladas sentimentais, e quando acabou os espectadores aplaudiram com entusiasmo, pedindo mais ainda. Mas ela não os satisfez. Tyler fazia tão grande barulho, aplaudindo e uivando como um lobo, que atraiu a atenção da mulher. Os seus olhos enormes, que Donovan sabia serem verdes, embora não estivesse agora bastante perto para lhes distinguir a cor, viram-no.
O barulho era ensurdecedor e impedia que se ouvisse fosse o que fosse, mas a expressão da mulher e o movimento dos seus lábios permitiram compreender que ela tinha soltado uma exclamação, e Roy adivinhou que ela murmurava o seu nome.
No momento seguinte a cançonetista tinha saltado do estrado e abria caminho entre os homens, sorrindo para um lado e para o outro, mas sem aceitar qualquer dos convites que lhe eram dirigidos.
— Vamos!... — berrou Tyler.— Ela vem para aqui! Não há dúvida de que eu a impressionei!
Estendendo os braços abriu caminho entre os assistentes, para a mulher passar.
— Obrigada... — disse-lhe ela, envolvendo-o num sorriso deslumbrante. E passou ao lado de Tyler, lançando-se nos braços de Donovan.
— Roy, que alegria ver-te !... — exclamou. — Já tinha perdido as esperanças de saber de ti... — e, levantando--se nos bicos dos pés, beijou-o na boca.
Os que contiveram o alento ao presenciar tão efusivo cumprimento tiveram de respirar para não morrerem sufocados antes que ela acabasse.
— Temos muito que falar, Roy! Acompanha-me ao hotel, queres? Já acabei o trabalho aqui, e podemos ir imediatamente, é só mudar de vestido.
Roy sorriu um tanto estupidamente. Estava bastante tonto, naquela altura, e a sua maior preocupação era não perder o equilíbrio.
Ela pegou-lhe na mão e levou-o, sem esperar o assentimento dele, deixando para trás o formidável coro de assobios com que os vaqueiros, entre gargalhadas, saudavam o espantado Tyler.
— E tem a gente amigos para isto !... — filosofou o alegre rapagão.
Sem saber bem como tinha chegado até ali, Roy encontrou-se no pequeno camarim da cançonetista. Ela, fechando a porta depois de ambos entrarem, apertou-se felinamente contra ele, acariciando-o ao de leve com as pontas dos dedos.
— Roy!... — suspirou, voltando a beijá-lo.
Ele tentou desprender-se, mas viu-se ainda mais envolvido pelos braços dela e sentiu o seu perfume , quente, que o perturbava.
Um momento depois, ela afastou-se, rindo, e voltou--lhe as costas.
— Anda, desabotoa-me o vestido... — ouviu-a ele dizer.
Ele obedeceu, desajeitado, o que fez com que ela se risse novamente, julgando-o perturbado.
— Perdeste o costume, Roy?... — perguntou, maliciosamente.
Mas ele mal ouviu o que ela dizia. Estava demasiadamente embriagado para perceber o que ouvia, e lutava consigo mesmo para tentar compreender onde estava e quem era aquela mulher.
Chamava-se Gabro... sim, sabia isso... Mas porque motivo estava ali?
Olhou para ela, tentando fixar os olhos, e viu que despira o seu vestido verde. Estava tão bonita como sempre... — pensou.
— Que fazes tu aqui, Roy?
— Trabalho no rancho «Shoe»... — disse ele, em voz pastosa, tentando coordenar as suas ideias.
— Mas, Roy... — exclamou ela. — Que disparates te acontecem?
Ele não respondeu. Não sabia que dizer. Porque motivo pensaria aquela mulher que era um disparate trabalhar no rancho «Shoe»?
— Quem é ela?... perguntou Gabor, começando a abotoar o vestido que envergara em substituição do verde.
— Ela?
— Vamos, Roy, não tentes enganar-me. Alguma razão há para que o magnífico Roy Donovan, o centauro, o herói dos «rodeos», o homem que, para onde quer que vá, tem sempre o melhor cavalo, o revólver mais certeiro '4, mais bela mulher, se converta num vaqueiro vulgar, a trabalhar num rancho qualquer. E a razão só pode ser uma, a de sempre... Saias!
Roy não a entendeu. Não estava em condições de entender tantas palavras, ditas tão rapidamente. Por outro lado sentia-se tranquilo. Tinha uma vaga ideia de que não devia estar ali, mas não se lembrava porquê, nem onde devia estar.
— Vamos... — disse Gabor. — Estaremos melhor no hotel.
Tomou-o pelo braço e fê-lo sair, falando e rindo alegremente.
Roy mantinha-se em pé com dificuldade, sem outra ideia senão a de não cair.

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