CLF074. CAP VII. Mocassins de massacre

Desde muito longe, antes que outra coisa, descobriu uma débil coluna de fumo que se elevava em linha reta para o céu, e ainda cavalgou um bom bocado antes de ver a pequena cabana situada num vale pouco profundo, junto a uma linha irregular de álamos e arbustos que indicavam com segurança a proximidade de uma corrente de água.
Duncan já conhecia a granja, pois tinha lá passado algumas vezes, mas ainda assim não deixou de sentir tristeza à medida que se aproximava ao apreciar a pobreza de tudo aquilo.
A cabana era pequena e tosca, feita de troncos verdes, pois os Miller tinham-se instalado ali há pouco tempo; havia outra instalação destinada ao estábulo, um curral reduzido já terminado e outro meio construído. Alguns animais pastavam junto ao riacho.
Viu sair o granjeiro da cabana, um homem forte de mediana estatura, empunhando um rifle, que deixou apoiado à parede ao reconhecê-lo.
— Que tal? — gritou-lhe Miller antes de te desmontado. Chega a tempo de comer.
Duncan desmontou e deu uma palmada n anca do cavalo para ir beber ao arroio.
— Agradeço-lhe, amigo — disse — mas não posso perder tempo. E creio que você também não.
Viu como se desvanecia o sorriso do granjeiro.
— Que quer dizer?
— Índios! Tive um encontro com três deles, que pelos vistos tinham todo o interesse em conseguir a minha cabeleira. Levavam pinturas de guerra e atacaram-me subitamente, sem a menor provocação da minha parte. Temo que se trate de uma incursão, e creio que deveria abandonar isto e dirigir-se ao acampamento do posto Brown.
Uma mulher apareceu no umbral da cabana, levando nos braços uma criança de peito e agarrada às saias uma linda menina dos seus três ou quatro anos.
Rudger tirou o chapéu e dedicou-lhe uma galante inclinação.
Ela continuava quieta, com o corpo rígido e gordo, envolto num claro vestido de musselina. Não é que fosse exatamente bonita, mas para Duncan, que levava bastantes dias sem ter qualquer contacto com mulher alguma, o seu aspeto era muito agradável.
Quando voltou a olhar o granjeiro, este sacudiu a cabeça lentamente.
— Não iremos — disse. — Se algum sarnoso «injun» (1) aparecer por aqui, dispomos de bastantes munições, o rifle e o revólver, de modo que os manteremos à distância. Assim o espero, pelo menos.
— É uma loucura — protestou Duncan acaloradamente. — Não sabemos o número de peles-vermelhas que podem andar por aqui, e ficando põe em perigo a vida de sua mulher e dos seus filhos.
— Que vida seria esta, se deitássemos a correr cada vez que alguém visse um índio por estas proximidades? — disse então a senhora Miller. — Trabalhamos muito aqui, e não vamos abandonar isto ao primeiro sinal de alarme. Eu também sei disparar e estamos bem armados. Saberemos rechaçar qualquer ataque.
Duncan olhou-a e viu que estava decidida a ficar. Não tinha medo e confiava no seu marido.
— Depois poderia voltar — insistiu, ainda que sabendo que seria inútil. — Isto está muito longe de tudo e...
— Que julga que encontraríamos ao voltar? — interrompeu o granjeiro. — Um só «injun» que aqui passasse, não deixaria mais do que cinzas.
(') No calão do Oeste utilizava-se muito a palavra «iniun», que não é mais do que a pronúncia figurada da palavra indiana, que significa índio.
Compreendendo que estava perdendo tempo, Rudger encolheu resignadamente os ombros.
— Está bem — grunhiu com certa irritação. -- Não posso obrigá-los. Desejo-lhes muita sorte.
Ia furioso ao dirigir-se para o cavalo, mas pela primeira vez sentiu respeito e admiração pela gente da fronteira. Inclusive, pensou que seria agradável criar alguma coisa com o seu próprio esforço e ter uma mulher como a senhora Miller, honrada e animosa, disposta a compartilhar os tempos de paz e de guerra, tristezas e alegrias. De repente imaginou Kitty esperando-o à porta de uma rústica cabana com um filho nos braços e outro agarrado à saia do vestido.
Fez uma careta e só não soltou uma gargalhada porque os Miller estavam próximos.
— Devo estar louco — murmurou. — Só a ideia de arrancar Catherine do seu palácio em Nova Orleans e transladá-la para esta pradaria selvagem e pô-la a amassar o pão, é prova de que o sol me derreteu os miolos.
Olhou para trás quando se afastava, e viu como a senhora Miller dizia ao pequeno que agitasse a mãozinha em sinal de despedida.
A cena deixou-lhe uma estranha sensação de angústia. Se pudesse ficar tê-lo-ia feito. Era como se visse uma nuvem vermelha, ameaçadora e sangrenta que se aproximava daquela família.
Era muito mais de meia-noite, quando Duncan chegou ao acampamento do Rio Smoky Hill e transmitiu as suas notícias na escuridão da noite, que em breve se foi tornando iluminada e cheia de gritos.
Chamados pelas vozes dos seus chefes, os homens abandonaram rapidamente as tendas e num momento o acampamento fervia de atividade.
Os exploradores, todos eles veteranos da fronteira, sem mais exceção que Rudger, não precisavam de muito tempo para se prepararem.
Entretanto, na tenda do capitão Henely, este estendeu um mapa sobre a secretária, e tanto ele como Semple, outro oficial e dois sargentos além de Rudger, inclinaram-se sobre o mesmo.
— Vamos a ver — disse ao novato explorador. — Situe esses montes onde foi atacado.
Duncan olhou o mapa e viu imediatamente tratar-se de um trabalho dos cartógrafos militares, e não era necessário o dedo de Henely, indicando um pequeno agrupamento de tendas situado junto ao rio, para situar a sua posição. Imediatamente viu também uma pequena mancha de tinta esboçando habilmente uma cabana, sem dúvida a granja de Miller, e estavam também ali assinalados os agrupamentos de outros colonos. Com todos estes detalhes não lhe foi difícil precisar o lugar do seu encontro com os selvagens.
— Aqui — disse, assinalando com o lápis, que o capitão lhe oferecia.
— Está seguro disso? — inquiriu Henely. O jovem repetiu as suas comprovações antes de responder. Não queria enganar-se.
— Sim, meu capitão — disse por fim.
— Ouviste, John — Henely levantou a cabeça para olhar para o tenente. E continuou: — Que tens?
John Semple tinha na mão um dos mocassins levados por Rudger, e o seu rosto estava muito pálido. Nem parecia ter ouvido o seu chefe e amigo.
— John!
O tenente levantou a cabeça com evidente sobressalto.
— Que tens? — repetiu Henely.
— Que Deus nos ajude! — murmurou Semple. — Estes mocassins não pertencem a nenhum cheyenne. São sioux!
Henely pareceu perturbado.
— Mas então... não é uma simples incursão! Os índios lançaram-se para a guerra!
Semple guardou silêncio, como se aquilo fosse óbvio, que não merecesse resposta. Efetivamente, não tinha sido uma pergunta.
Henely saiu imediatamente do seu momentâneo abatimento.
— Envie imediatamente um correio a Fort Wallace, e destaque homens para avisar os colonos. Que o resto da companhia se prepare para partir. Saímos já.
Semple saudou e saiu da tenda acompanhado por outro oficial e dos sargentos. Henely olhou então para Duncan.
— Foi um bom trabalho, rapaz — disse com clareza, olhando-o nos olhos. — Vá arranjar um cavalo fresco, para partirmos dentro de dez minutos.
Nada mais. Intimamente, Duncan sentiu-se satisfeito. Ainda que não tivesse dito nada, o repto que lançara a ele próprio, pouco mais de um mês atrás, pairava no ar, e com as suas secas palavras, o capitão acabava de reconhecer que não se tratava de uma simples bravata.
— Diabos! Que se passa? — perguntou-lhe Travis, quando se encontrou com ele.
Duncan explicou-lho rapidamente.
— Raios, companheiro! — exclamou o calmeirão, admirado, quando o seu amigo terminou o seu relato. — Tu sozinho despachaste três sioux?
O jovem sentiu-se um pouco perturbado.
— Bom... Não sabia que o eram, e além disso, não tinha outra alternativa. Pelos vistos, a pedra caiu ao soltar a pata do meu cavalo, mas eu não o sabia, e com o cavalo coxo, sem lugar onde refugiar-me, não tive outro remédio que vencer o meu medo e acabar com aqueles diabos.
— Claro! Assim é fácil.
Duncan olhou o grupo de homens que se haviam juntado à sua volta, e calou-se, com os nervos crispados. Depois de cavalgar todo o dia, cansado, cheio de pó, com fome e sede, que ainda não tivera tempo de saciar, não estava de humor para troças, se alguém soltasse algumas das do costume.
Um dos homens estendeu-lhe um cantil.
— Bebe um trago, companheiro. Bem o necessitas. Isto reanimar-te-á.
Duncan agarrou no recipiente com certo receio, mas o olfato disse-lhe que desta vez não se tratava de nenhuma partida. Aquilo era bom «whisky», e ele entendia disso.
Precisava de ser cordial, e bebeu um longo trago.
— Obrigado — disse, devolvendo o cantil, e puxando de um lenço para limpara a cara
Uma mão estendeu-se-lhe para lhe oferecer um comprido e fino cigarro.
— Já sabemos que não mascas tabaco, de modo que fuma esta cigarrilha. É boa. Comprei umas quantas quando andava de patrulha no posto Brown.
Rudger aceitou e logo lhe estenderam um fósforo aceso.
— Atenção! Formar! — gritou a voz do tenente Semple.
Os homens levando os seus cavalos pelas rédeas, ocuparam os seus lugares.
O capitão saiu da sua tenda e um explorador levou-lhe o cavalo.
— Montem! — ordenou.
Enquanto fazia tudo isto maquinalmente, Duncan tentou aborrecer-se consigo próprio, porque tinha os olhos enevoados e sentia-se ridiculamente emocionado. Acabava de descobrir que gostava da opinião dos companheiros, e que o enchia de orgulho e alegria terem--no aceitado na sua camaradagem, como o demonstrava as atenções que acabavam de lhe prodigalizar.
A companhia inteira pôs-se em marcha na escuridão. Só as estrelas, que em breve se apagariam com o tom acinzentado da manhã, lhes fornecia alguma luz.
Quatro horas mais tarde, já bem entrada a manhã, avistaram uma negra coluna de fumo que se elevava do vale pouco profundo.
O capitão Henely levantou um braço e deu ordem de passar do trote para o galope, que toda a companhia executou com bom acerto.
— O rancho de Miller — murmurou Rudger, com o coração oprimido.
Dificilmente o podia ter ouvido Travis, no meio do barulho dos cavalos, mas o mesmo pensamento estava na mente de todos, e pôde responder sem ter ouvido as suas palavras.
— O que resta do rancho.
Só cadáveres e cinzas. O único sinal de vida no local provinha de um par de corvos que se moviam com terrível frenesim em torno dos restos meio devorados pelas chamas da pequena cabana que havia junto ao riacho.
A aproximação dos cavaleiros fez fugir em debandada as aves, que se colocaram em círculo de guerra. Mas os exploradores já não; podiam servir de nenhuma ajuda aos Miller.
Os corpos estavam completamente nus, pois haviam sido profanados e mutilados.
Rudger evocou o quadro da senhora Miller com o pequeno nos braços e fazendo-o dizer adeus com a mãozita, enquanto o outro, com a cabecita loira, permanecia agarrado à sua saia, e olhou incrédulo os sangrentos despojos em que tinham ficado convertidos. Os corvos tinham completado a sua obra arrancando tiras de carne e parte das entranhas. O espetáculo que ofereciam aqueles corpos mutilados era qualquer coisa de espantoso.
Duncan não se lembrou então do que lhe contara o capitão Wilson, acerca das atrozes matanças realizadas anos atrás por Chivington. Nem o tinha visto nem o sentiu a sua carne. Só via quatro cadáveres sem cabeleira, horrivelmente destroçados, e sentiu um ódio intenso e profundo que parecia queimar-lhe as entranhas.
— Tenente! — ouviu-se a voz do capitão Henely, enrouquecida pela ira, — deixe alguns homens para enterrarem os corpos, e que nos sigam, logo que tenham terminado. Não nos podemos deter. Os índios levam-nos mais de três horas de vantagem e talvez cheguemos a temo de impedir a sua próxima tropelia.
Rudger moveu-se na sela fazendo ranger o couro. Estava seguro de que Semple o elegeria a ele, pois a tarefa não podia ser mais desagradável e não desaproveitaria a oportunidade para o amesquinhar, o que agora conseguiria duplamente, já, que estava tão ansioso de se encontrar de novo com os índios.
O tenente voltou-se e começou a gritar nomes. Cinco no total.
Duncan ficou quieto na sela, como uma estátua. Semple tinha-se calado, mas ainda esperava ouvir o seu nome. Seguramente que se havia esquecido, ou deixado para último a fim de o aborrecer ainda mais.
Henely levantou o braço.
— Em marcha! — gritou.
«Esqueceu-se!» — pensou Rudger, estupefacto de assombro.
Uma hora mais tarde, as marcas deixadas pelos índios dividiam-se subitamente em duas. Henely levantou o braço e a tropa estacou.
Em volta do capitão reuniram-se uns quatro exploradores mais veteranos, e estudaram as pegadas, enquanto o resto da companhia desmontava e se protegia com a sombra dos próprios cavalos, pois o sol caía como uma corrente de fogo, abrasando o céu e a terra e fazendo nuvens de calor quase tão nítidas, como o fumo que se eleva das paisagens.
— Rudger, chegue cá!
O jovem entregou as rédeas do seu cavalo a Travis e acudiu à chamada do tenente, perguntando a si próprio que classe de missão desagradável o iria agora encarregar.
Semple estava com outros exploradores no sítio onde os rastos se dividiam.
— Vamos a ver, Rudger — disse o tenente, — fixe-se bem e diga-me o que lhe parece isto.
Cada vez mais surpreendido, Duncan pensou qual seria o objetivo daquilo. Para ninguém, era segredo que as suas habilidades de rastejador eram demasiado recentes e qualquer homem do grupo podia dar-lhe lições. Acaso pretendia rir-se da sua ignorância?
Examinou cuidadosamente o terreno tentando fixar todos os detalhes.
— Diria que os índios pensaram que vamos atrás deles, e realizaram esta manobra para nos despistar — disse por fim.
Semple cabeceou concordando.
— Isso é evidente. Bem, agora, uma destas pistas é falsa. Mas qual?
Pese a todo o seu afã de aprender, Rudger só levava um mês como explorador, e sen-tiu-se perplexo.
— O rasto que se dirige para o Norte, é firme e muito claro, enquanto o outro parece apagado — começou receoso. — Parece lógico, que se pretendessem enganar-nos, teriam marcado claramente o rasto falso e apagado completamente o outro. Claro, isto teoricamente. Não sei se é possível apagar as marcas de um enorme pelotão neste terreno plano e poeirento.
Semple fez uma careta que parecia um sorriso.
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— Os índios são verdadeiros diabos nisto. É possível — assegurou.
Os outros exploradores veteranos na guerra contra os índios ouviram atentamente o que o seu jovem companheiro dizia, e isto era tão fora do vulgar, que Duncan pensou se não estaria a sonhar.
— Isso é precisamente o que eu penso — disse um deles. E apontando para o Sul, acrescentou convencido: — Esta é a verdadeira pista.
A certeza daquele homem levou a dúvida ao espírito de Rudger, por surpreendente que pareça. Tinha ouvido muitas histórias sobre a astúcia dos índios, e perguntou a si mesmo se seria tão fácil descobrir o engano. Era possível que confiassem enganá-los com tão evidente pista, porque até ele próprio com uma simples olhadela o tinha visto.
— Que o preocupa?
Semple deve ter estado a observá-lo, pois ao levantar os olhos com certo sobressalto, encontrou o seu olhar atento.
— Não tenha dúvida em dizer o que pensa. Precisamente para isso é que o chamei.
Duncan não acabava de sair do seu assombro. Seria possível que só por ele ter morto três índios, tivesse granjeado a consideração e respeito de uns homens que no dia anterior se riam da sua inexperiência?
— Calculo que os índios sabem que é um destacamento e não um exército que vai no seu encalço, e precisamente por esse facto e até porque conhecemos muito bem as suas manhas, pretendam enganar-nos.
— Ou seja, que tentam dar-nos gato por lebre, como vulgarmente se diz.
— Isso é o que penso, senhor.
— Pode estar ou não enganado, mas você é esperto, Rudger. Bem, a ideia é sua. Leve dez homens e siga a pista do Norte. Se ao cabo de algumas milhas ela continuar tão marcada como agora, e sem tendência alguma para se desvanecer, envie alguém atrás de nós. Vamos, não perca tempo.
Dominando dificilmente o seu assombro, Rudger saudou-o militarmente e voltou para junto de Travis.

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