PAS715. Salvo pelos índios
Quando o grupo de índios «yumas» se dispôs a regressar ao seu acampamento, depois de percorrer grande parte das margens do Gila, um deles aproximou do que parecia ser o chefe e disse-lhe na sua língua:
— Passa-se qualquer coisa ali em cima, «Pena Azul» — e apontou na direção contrária à do curso de água.
— Por que dizes isso?
— Vi muitos pássaros carnívoros.
— Por estes lados há muitos.
-- Mas não voam sempre à volta do mesmo sítio.
— Leva-me lá.
O guerreiro índio virou o cavalo e partiu a galope, seguido de «Pena Azul». Oito ou dez minutos depois, os dois peles-vermelhas observavam, do alto de urna colina rochosa, os grandes círculos que os abutres descreviam à volta de qualquer coisa que eles não podiam ver.
— Deve ser algum cão das pradarias o que chama a atenção desses pássaros. Nenhum homem se atreveria a meter-se no deserto, e ainda menos pelo rio.
— Quer que averigue?
— Não, irei eu — disse o chefe «yuma». — Tu fica aqui, para o caso de precisar de ti.
«Pena Azul» fustigou o cavalo e conduziu-o com grande destreza por entre as rochas e matagais até onde o deserto se estendia, amarelo e soalheiro, numa solidão trágica.
Ao longe, qualquer coisa parecia mexer-se. Com a mão em pala sobre os olhos, «Pena Azul» viu que não era nenhum cão das pradarias nem outra espécie semelhante de fera. Era muito maior, do tamanho de um cavalo.
O índio não pensou duas vezes. Destravou a carabina que empunhava e galopou para onde os abutres tinham concentrado a sua atenção.
O voo das aves de rapina era cada vez mais baixo e os círculos mais pequenos, sinal evidente de que se preparavam para o ataque.
«Pena Azul» queria chegar antes dos bicharocos atacarem. Sabia que em qualquer parte onde se encontre um cavalo existe um homem, e com mais forte razão num lugar como aquele, onde, sem a ajuda de tão nobre animal, é impossível chegar.
As aves carnívoras, como se pressentissem que a chegada daquele intruso lhes ia estragar o festim que já tinham como certo, grasnaram com mais intensidade, e algumas, mais ousadas do que as outras, fecharam as asas e lançaram-se como setas num veloz voo picado.
Sem deter o cavalo, certo do que aquilo podia significar se os bicos rijos e curvos dos pássaros entrassem em contacto com as suas vítimas, «Pena Azul» disparou quatro vezes a carabina, com precisão tão matemática, com pontaria tão perfeita, que abateu quatro passarocos.
Os outros, compreendendo que de momento nada podiam fazer, ganharam altura, embora sem deixarem de descrever grandes círculos.
O índio chegou ao local onde um cavalo relinchava assustado e um homem jazia no solo.
Aproximou-se do segundo e verificou que estava ferido. Rasgou-lhe as calças e viu do que se tratava: uma ferida não muito profunda, mas que ainda manava sangue, sobre outro seco e coagulado. Além disso, aquele homem tinha muita febre.
«Pena Azul» quis apanhar o cavalo do desconhecido, mas não o conseguiu. A sede e o calor pareciam tê-lo enlouquecido, e o animal corria de um lado para o outro, embora com evidentes sinais de cansaço.
O «yuma» levantou a cabeça e viu galopar para ele o guerreiro que o avisara. Quando o teve a seu lado, disse-lhe:
— Temos de levar este homem para o nosso acampamento.
— Já viste que é um branco?
— Isso não importa, «Antílope Veloz».
— Eles são maus para os índios.
— Nem todos.
— E quem te diz que este não o seja?
— Quem te diz a ti que o é?
— Um branco pode ocasionar aborrecimentos no acampamento.
— Porquê, meu amigo?
— Se Jerónimo souber, atacar-nos-á.
Não creio que o faça. Além disso, Jerónimo não precisa de saber.
-- Esse endiabrado «apache» sabe tudo.
— Se não dissermos a ninguém, não saberá.
— Vê-lo-ão chegar ao acampamento, «Pena Azul».
— Tapá-lo-emos com qualquer coisa.
— Quando chegarmos à nossa aldeia descobri-lo-ão.
— Alojá-lo-ei na minha tenda. Minha irmã e eu trataremos dele.
— Não o devíamos levar, «Pena Azul».
— Também não o podemos deixar aqui. Os abutres acabariam com ele.
— Isso não é da nossa conta.
— Esqueces que os rostos pálidos nos ajudaram muitas vezes?
— Não me esqueço de nada, mas também sei que por culpa deles têm morrido muitos dos nossos.
— Agora não devemos discutir isso. É melhor levá-lo.
— Não poderás ocultar o teu propósito, «Pena Azul». Os teus guerreiros aproximam-se e terás de lhes dizer o que vais fazer.
O chefe «yuma» virou-se e viu chegar, em verdadeiro tropel, todos os homens da sua tribo que o acompanhavam naquela expedição.
Enquanto não chegaram não disse nada. Nem olhou sequer para Glen. Quando todos o rodearam, disse:
— Este homem morrerá se não o socorrermos. 2 um branco, sem dúvida, mas vocês sabem que os brancos se portaram, algumas vezes, bem connosco.
Ninguém respondeu às palavras do chefe.
— Eu estou disposto a socorrê-lo, mas «Antílope Veloz» diz que não o devemos fazer, com medo de que Jerónimo saiba e exerça represálias contra nós. Que dizem vocês?
Um dos guerreiros, um dos mais velhos, adiantou o seu cavalo e disse:
— O que «Pena Azul» fizer e disser será acatado pelos seus guerreiros. Os «yumas» nunca temeram os «apaches», e por medo não devemos deixar de fazer o que julgamos bom.
Pena Azul passeou a vista por todos os presentes e esperou que algum dissesse qualquer coisa. Vendo que se calavam, aproximou-se do seu cavalo, tirou o cantil e acercou-se de Glen.
Pôs-lhe o recipiente nos lábios e verteu água neles. Glen não tinha consciência de nada.
— É melhor levá-lo para o acampamento. Aqui pouco podemos fazer por ele.
Glen foi deitado num cavalo e o próprio «Pena Azul» seguiu atrás dele, como se lhe dessa escolta.
Alguns índios conseguiram apanhar o cavalo de Glen, e o animal, depois de beber água, ficou mais calmo.
Ao entardecer, a caravana chegou à vista da aldeia índia. Muitas mulheres e crianças saíam a recebê-los, e ao verem que transportavam um ferido, a curiosidade apoderou-se de todos.
«Pena Azul» continuou sem se deter até ao se «tipi», onde ele próprio, sem permitir que ninguém o ajuda$:se, introduziu o 'rosto-pálido.
Estava a deitá-lo num monte de peles de búfalo, quando uma jovem índia, bonita como um amanhecer de Primavera, apareceu.
— Quem é esse homem? Que lhe aconteceu?
— Encontrámo-lo nos confins do deserto. Deve tê-lo atravessado e perdeu as forças nas areias. Além disso, parece que alguém disparou contra ele e o feriu.
— É grave? — perguntou a rapariga.
— Não sei. Parece que perdeu muito sangue e o sol sugou-lhe do corpo toda a água que continha. És capaz de o tratar?
A índia fixou a vista no rosto de Glen Garret. Viu-o pálido, doente, com um terrível aspeto de cansaço.
— Farei tudo o que puder. Primeiro tentarei refrescar-lhe a cabeça.
-- Ajudar-te-ei.
-- Pois sim. Preciso de água fria do arroio.
Enquanto a jovem arranjava uns bocados de pano, colocava um tacho de lata ao lado da cama de Glen e destapava uns frascos que decerto continham unguentos, «Pena Azul» pegou numa vasilha de barro e saiu da tenda para ir buscar a água solicitada.
Quando regressou, a irmã acendera o lume e pusera nele outro recipiente com água, para que fervesse.
— Descobre-lhe a ferida — disse ela. — Tira-lhe esse bocado de calça; será melhor.
— Se preferes, posso tirar-lhas por completo.
— Não. Terias de o mover muito e isso seria pior para ele.
Sem responder, o índio rasgou o tecido e descobriu o quadril de Glen. Aquilo tinha mau aspeto.
— Enquanto lhe trato da ferida — disse a rapariga --, põe-lhe tu compressas de água fria na testa. Isso aliviá-lo-á muito.
Cada um por seu lado, os dois irmãos prestaram a Glen Garret os primeiros socorros, fazendo cada um o que sabia e podia, talvez com mais boa vontade do que acerto.
Mas mesmo assim, ao cabo de meia hora o rapaz tn.119, a ferida limpa, estava bem ligado, o calor da sua 'cabeça diminuíra e, embora em Pouca quantidade, tinham conseguido que algumas gotas de água lhe refrescassem a garganta.
— Bom, agora só nos resta esperar. Que Manitu faça o que falta — disse a jovem índia.
— És demasiado boa, «Pequena Estrela». Se este homem se salvar, a ti deverá a vida.
— E a ti, que o trouxeste, «Pena Azul».
— Esta noite ficarei eu a olhar por ele.
— Não. Como é a primeira noite, ficarei eu.
— Queres que alguma das mulheres te acompanhe?
— Não é preciso. Este infeliz dar-me-á pouco trabalho. Acho que levará uns dias a recuperar os sentidos, se os recuperar.
— Por que dizes isso?
— O que fizemos por ele foi pouco, querido irmão. Um homem que atravessa o deserto, demais a mais ferido, tem de ser muito forte para sobreviver a tal façanha.
— Este homem parece forte, «Pequena Estrela».
— Outros mais fortes do que ele matou o deserto.
— Esperemos então que ele consiga sobreviver.
— E que não nos atraia a cólera de Manitu. A nossa intenção é boa.
«Pena Azul» olhou a «Pequena Estrela» e não disse nada. Pensou que ela também receava que aquele branco no acampamento lhes pudesse trazer complicações, exatamente como «Antílope Veloz» previra.
Mas, enfim, estava ali e já não se podia voltar atrás. De resto, nunca um chefe «yuma» se arrependera de nada e muito menos de salvar um ser humano. Fora assim que o pai de «Pena Azul» ensinara o filho a comportar-se.
— Está a abrir os olhos -- disse «Pequena Estrela», sem poder esconder a sua alegria.
Creio que já podemos cantar vitória -- respondeu o irmão.
— A sua vitalidade salvou-o.
— E os teus cuidados.
— Mas se não fosse forte... E se tu o não tivesses ajudado...
— Também tu fizeste muito por ele.
— Talvez. Mas o importante é ter-se salvo.
Os dois irmãos ficaram silenciosos, a olhar sorridentes e com curiosidade para Glen.
Este também os olhava, com a maior estranheza refletida no rosto moreno. Virou a cabeça para um lado para. o outro e, sem que o espanto o abandonasse, perguntou:
— Onde estou? Que me aconteceu?
Antes de lhe responder, a «Pequena Estrela» olhou para o irmão e depois sorriu ao ferido.
— Não te preocupes — disse-lhe. — Estás entre amigos.
--- Entre amigos? É curioso!
Os dois irmãos entreolharam-se sem compreender e «Pena Azul» disse, com evidente mal-estar:
— Curioso porquê? Não és capaz de considerar como amigos aqueles que te salvaram?
Glen sorriu, um pouco confundido e respondeu:
— Creio que não me expliquei bem. Disse que é curioso porque me lembro perfeitamente que, se cheguei a esta situação, foi precisamente por me culparem de ser índio.
—É mau ser índio? — perguntou «Pequena Estrela».
— Se com isso se consegue estar a teu lado, deve ser o mais maravilhoso do mundo.
A índia sentiu que estas palavras lhe perfuravam a
pele, continuavam a penetrar-lhe na carne e chegavam--lhe violentamente ao coração. Nunca lhe tinham dito nada tão bonito.
— Entre os homens brancos — prosseguiu Glen — não entre todos, felizmente, ser índio não é bom, e vocês devem sabê-lo. Mas se ser índio não é bom, ser «apache» é urna coisa que não tem perdão. A mim confundiram--me com um «apache» e quiseram matar-me. Claro que eu não deixei e tive de me livrar de três inimigos, mas um deles conseguiu disparar e se não tivesse sentido tanto medo, creio que não estaria agora a contar-lhes isto.
— E como foste capaz de te meter no deserto?
— Era a minha única salvação.
— Podias ter morrido.
-- Se não o fizesse, também. Vinte homens atrás de um ferido é muita gente, e ter-me-iam apanhado, por fim, e enforcado. Esperei que o deserto lhes metesse respeito e assim. aconteceu.
— Mas se nós não tivéssemos aparecido...
— Eu teria morrido e agora não me seria dado o prazer de chamar irmãos aos dois.
«Pena Azul» gostava da maneira de falar daquele branco. Acima de tudo, era agradecido, e um homem que o é não pode deixar de. ser nobre, valente e leal.
--- «Pena Azul», chefe dos «yumas», sentir-se-á muito feliz por ter um irmão branco. E «Pequena Estrela» também.
— E eu sou o mais feliz dos três. Agora contraí tal dívida, para com os índios, que daqui em diante me sentirei um pouco índio também e comportar-me-ei como se o fosse.
— As tuas palavras agradam-me muito.
— E a vossa generosidade conquisto-me para sempre. Ainda que toda a gente combatesse os índios, eu defendê-los-ia e lutaria sempre a seu lado.
— Obrigado, irmão — disse «Pena Azul».
Durante toda a conversa, «Pequena Estrela» estivera suspensa das palavras de Glen, e embora o jovem, ao falar, se dirigisse aos dois, a índia não deixara de notar certa intensidade nas suas pupilas negras, quando se cravaram nela.
— Não deves falar tanto — disse-lhe ela. --- Teremos tempo disso quando estiveres completamente bom. Tiveste febre durante estes dias e...
— Estes dias? — admirou-se o jovem. -- Desde quando estou aqui?
— Já passaram cinco poentes — respondeu ela.
— Cinco dias? É possível que durante cinco dias não tenha sequer, sabido que existia?
— Tantos como tu dizes — sorriu «Pena Azul». — Mas já passou tudo e o que lá vai não tem nenhuma importância. Esperamos que breve estejas bom de todo, para saíres da tenda e reunires-te connosco. Celebraremos o teu restabelecimento.
— Obrigado, «Pena Azul». Acho que estão a fazer por mim mais do que mereço. Chamo-me Glen Garret e sou do Norte, do Oregão.
O índio levantou-se e disse, quando chegou à porta:
— «Pena Azul» deseja ao seu irmão Glen que descanse e saiu.
«Pequena Estrela» sentiu-se, de súbito, como se não soubesse que fazer.
- - Eu também me vou embora disse, sem olhar para Glen. -- Deves descansar.
-- Um momento, «Pequena Estrela» — chamou o rapaz, soerguendo-se no leito. — Quem olhou por mim durante todo este tempo? Quem me tratou?
A jovem sentiu que o rubor lhe subia às faces e respondeu com voz fraca:
— Eu, ajudada por meu irmão.
— De noite, também?
— Tinhas febre e precisavas dos nossos cuidados.
— Dei-te muito trabalho?
— O que fiz, fi-lo com prazer.
— Queres aproximar-te, «Pequena Estrela». Peço-to.
A jovem acercou-se da cama e parou diante de Glen.
— Aproxima-te, por favor, e dá-me a tua mão.
Sem que a índia compreendesse o que o doente pretendia, ajoelhou-se junto dele e estendeu-lhe a mão direita.
Glen tomou-a entre as suas e esteve a observá-la durante muito tempo. Depois, disse:
— Quero gravar na memória a recordação desta mão à qual, sem dúvida, devo a vida, «Pequena Estrela». Ela soube fazer por mim o que, decerto, mais ninguém saberia.
Sem que a índia o esperasse, Glen levou a mão feminina aos lábios e beijou-a com unção. A índia retirou-a com violência e pôs-se em pé.
— Não te zangues, «Pequena Estrela». Esse beijo na tua mão leva todo o agradecimento e admiração que tu mereces, do homem que nunca se esquecerá de ti.
Com os olhos brilhantes como o fogo, «Pequena Estrela» saiu da tenda a correr.
— Passa-se qualquer coisa ali em cima, «Pena Azul» — e apontou na direção contrária à do curso de água.
— Por que dizes isso?
— Vi muitos pássaros carnívoros.
— Por estes lados há muitos.
-- Mas não voam sempre à volta do mesmo sítio.
— Leva-me lá.
O guerreiro índio virou o cavalo e partiu a galope, seguido de «Pena Azul». Oito ou dez minutos depois, os dois peles-vermelhas observavam, do alto de urna colina rochosa, os grandes círculos que os abutres descreviam à volta de qualquer coisa que eles não podiam ver.
— Deve ser algum cão das pradarias o que chama a atenção desses pássaros. Nenhum homem se atreveria a meter-se no deserto, e ainda menos pelo rio.
— Quer que averigue?
— Não, irei eu — disse o chefe «yuma». — Tu fica aqui, para o caso de precisar de ti.
«Pena Azul» fustigou o cavalo e conduziu-o com grande destreza por entre as rochas e matagais até onde o deserto se estendia, amarelo e soalheiro, numa solidão trágica.
Ao longe, qualquer coisa parecia mexer-se. Com a mão em pala sobre os olhos, «Pena Azul» viu que não era nenhum cão das pradarias nem outra espécie semelhante de fera. Era muito maior, do tamanho de um cavalo.
O índio não pensou duas vezes. Destravou a carabina que empunhava e galopou para onde os abutres tinham concentrado a sua atenção.
O voo das aves de rapina era cada vez mais baixo e os círculos mais pequenos, sinal evidente de que se preparavam para o ataque.
«Pena Azul» queria chegar antes dos bicharocos atacarem. Sabia que em qualquer parte onde se encontre um cavalo existe um homem, e com mais forte razão num lugar como aquele, onde, sem a ajuda de tão nobre animal, é impossível chegar.
As aves carnívoras, como se pressentissem que a chegada daquele intruso lhes ia estragar o festim que já tinham como certo, grasnaram com mais intensidade, e algumas, mais ousadas do que as outras, fecharam as asas e lançaram-se como setas num veloz voo picado.
Sem deter o cavalo, certo do que aquilo podia significar se os bicos rijos e curvos dos pássaros entrassem em contacto com as suas vítimas, «Pena Azul» disparou quatro vezes a carabina, com precisão tão matemática, com pontaria tão perfeita, que abateu quatro passarocos.
Os outros, compreendendo que de momento nada podiam fazer, ganharam altura, embora sem deixarem de descrever grandes círculos.
O índio chegou ao local onde um cavalo relinchava assustado e um homem jazia no solo.
Aproximou-se do segundo e verificou que estava ferido. Rasgou-lhe as calças e viu do que se tratava: uma ferida não muito profunda, mas que ainda manava sangue, sobre outro seco e coagulado. Além disso, aquele homem tinha muita febre.
«Pena Azul» quis apanhar o cavalo do desconhecido, mas não o conseguiu. A sede e o calor pareciam tê-lo enlouquecido, e o animal corria de um lado para o outro, embora com evidentes sinais de cansaço.
O «yuma» levantou a cabeça e viu galopar para ele o guerreiro que o avisara. Quando o teve a seu lado, disse-lhe:
— Temos de levar este homem para o nosso acampamento.
— Já viste que é um branco?
— Isso não importa, «Antílope Veloz».
— Eles são maus para os índios.
— Nem todos.
— E quem te diz que este não o seja?
— Quem te diz a ti que o é?
— Um branco pode ocasionar aborrecimentos no acampamento.
— Porquê, meu amigo?
— Se Jerónimo souber, atacar-nos-á.
Não creio que o faça. Além disso, Jerónimo não precisa de saber.
-- Esse endiabrado «apache» sabe tudo.
— Se não dissermos a ninguém, não saberá.
— Vê-lo-ão chegar ao acampamento, «Pena Azul».
— Tapá-lo-emos com qualquer coisa.
— Quando chegarmos à nossa aldeia descobri-lo-ão.
— Alojá-lo-ei na minha tenda. Minha irmã e eu trataremos dele.
— Não o devíamos levar, «Pena Azul».
— Também não o podemos deixar aqui. Os abutres acabariam com ele.
— Isso não é da nossa conta.
— Esqueces que os rostos pálidos nos ajudaram muitas vezes?
— Não me esqueço de nada, mas também sei que por culpa deles têm morrido muitos dos nossos.
— Agora não devemos discutir isso. É melhor levá-lo.
— Não poderás ocultar o teu propósito, «Pena Azul». Os teus guerreiros aproximam-se e terás de lhes dizer o que vais fazer.
O chefe «yuma» virou-se e viu chegar, em verdadeiro tropel, todos os homens da sua tribo que o acompanhavam naquela expedição.
Enquanto não chegaram não disse nada. Nem olhou sequer para Glen. Quando todos o rodearam, disse:
— Este homem morrerá se não o socorrermos. 2 um branco, sem dúvida, mas vocês sabem que os brancos se portaram, algumas vezes, bem connosco.
Ninguém respondeu às palavras do chefe.
— Eu estou disposto a socorrê-lo, mas «Antílope Veloz» diz que não o devemos fazer, com medo de que Jerónimo saiba e exerça represálias contra nós. Que dizem vocês?
Um dos guerreiros, um dos mais velhos, adiantou o seu cavalo e disse:
— O que «Pena Azul» fizer e disser será acatado pelos seus guerreiros. Os «yumas» nunca temeram os «apaches», e por medo não devemos deixar de fazer o que julgamos bom.
Pena Azul passeou a vista por todos os presentes e esperou que algum dissesse qualquer coisa. Vendo que se calavam, aproximou-se do seu cavalo, tirou o cantil e acercou-se de Glen.
Pôs-lhe o recipiente nos lábios e verteu água neles. Glen não tinha consciência de nada.
— É melhor levá-lo para o acampamento. Aqui pouco podemos fazer por ele.
Glen foi deitado num cavalo e o próprio «Pena Azul» seguiu atrás dele, como se lhe dessa escolta.
Alguns índios conseguiram apanhar o cavalo de Glen, e o animal, depois de beber água, ficou mais calmo.
Ao entardecer, a caravana chegou à vista da aldeia índia. Muitas mulheres e crianças saíam a recebê-los, e ao verem que transportavam um ferido, a curiosidade apoderou-se de todos.
«Pena Azul» continuou sem se deter até ao se «tipi», onde ele próprio, sem permitir que ninguém o ajuda$:se, introduziu o 'rosto-pálido.
Estava a deitá-lo num monte de peles de búfalo, quando uma jovem índia, bonita como um amanhecer de Primavera, apareceu.
— Quem é esse homem? Que lhe aconteceu?
— Encontrámo-lo nos confins do deserto. Deve tê-lo atravessado e perdeu as forças nas areias. Além disso, parece que alguém disparou contra ele e o feriu.
— É grave? — perguntou a rapariga.
— Não sei. Parece que perdeu muito sangue e o sol sugou-lhe do corpo toda a água que continha. És capaz de o tratar?
A índia fixou a vista no rosto de Glen Garret. Viu-o pálido, doente, com um terrível aspeto de cansaço.
— Farei tudo o que puder. Primeiro tentarei refrescar-lhe a cabeça.
-- Ajudar-te-ei.
-- Pois sim. Preciso de água fria do arroio.
Enquanto a jovem arranjava uns bocados de pano, colocava um tacho de lata ao lado da cama de Glen e destapava uns frascos que decerto continham unguentos, «Pena Azul» pegou numa vasilha de barro e saiu da tenda para ir buscar a água solicitada.
Quando regressou, a irmã acendera o lume e pusera nele outro recipiente com água, para que fervesse.
— Descobre-lhe a ferida — disse ela. — Tira-lhe esse bocado de calça; será melhor.
— Se preferes, posso tirar-lhas por completo.
— Não. Terias de o mover muito e isso seria pior para ele.
Sem responder, o índio rasgou o tecido e descobriu o quadril de Glen. Aquilo tinha mau aspeto.
— Enquanto lhe trato da ferida — disse a rapariga --, põe-lhe tu compressas de água fria na testa. Isso aliviá-lo-á muito.
Cada um por seu lado, os dois irmãos prestaram a Glen Garret os primeiros socorros, fazendo cada um o que sabia e podia, talvez com mais boa vontade do que acerto.
Mas mesmo assim, ao cabo de meia hora o rapaz tn.119, a ferida limpa, estava bem ligado, o calor da sua 'cabeça diminuíra e, embora em Pouca quantidade, tinham conseguido que algumas gotas de água lhe refrescassem a garganta.
— Bom, agora só nos resta esperar. Que Manitu faça o que falta — disse a jovem índia.
— És demasiado boa, «Pequena Estrela». Se este homem se salvar, a ti deverá a vida.
— E a ti, que o trouxeste, «Pena Azul».
— Esta noite ficarei eu a olhar por ele.
— Não. Como é a primeira noite, ficarei eu.
— Queres que alguma das mulheres te acompanhe?
— Não é preciso. Este infeliz dar-me-á pouco trabalho. Acho que levará uns dias a recuperar os sentidos, se os recuperar.
— Por que dizes isso?
— O que fizemos por ele foi pouco, querido irmão. Um homem que atravessa o deserto, demais a mais ferido, tem de ser muito forte para sobreviver a tal façanha.
— Este homem parece forte, «Pequena Estrela».
— Outros mais fortes do que ele matou o deserto.
— Esperemos então que ele consiga sobreviver.
— E que não nos atraia a cólera de Manitu. A nossa intenção é boa.
«Pena Azul» olhou a «Pequena Estrela» e não disse nada. Pensou que ela também receava que aquele branco no acampamento lhes pudesse trazer complicações, exatamente como «Antílope Veloz» previra.
Mas, enfim, estava ali e já não se podia voltar atrás. De resto, nunca um chefe «yuma» se arrependera de nada e muito menos de salvar um ser humano. Fora assim que o pai de «Pena Azul» ensinara o filho a comportar-se.
— Está a abrir os olhos -- disse «Pequena Estrela», sem poder esconder a sua alegria.
Creio que já podemos cantar vitória -- respondeu o irmão.
— A sua vitalidade salvou-o.
— E os teus cuidados.
— Mas se não fosse forte... E se tu o não tivesses ajudado...
— Também tu fizeste muito por ele.
— Talvez. Mas o importante é ter-se salvo.
Os dois irmãos ficaram silenciosos, a olhar sorridentes e com curiosidade para Glen.
Este também os olhava, com a maior estranheza refletida no rosto moreno. Virou a cabeça para um lado para. o outro e, sem que o espanto o abandonasse, perguntou:
— Onde estou? Que me aconteceu?
Antes de lhe responder, a «Pequena Estrela» olhou para o irmão e depois sorriu ao ferido.
— Não te preocupes — disse-lhe. — Estás entre amigos.
--- Entre amigos? É curioso!
Os dois irmãos entreolharam-se sem compreender e «Pena Azul» disse, com evidente mal-estar:
— Curioso porquê? Não és capaz de considerar como amigos aqueles que te salvaram?
Glen sorriu, um pouco confundido e respondeu:
— Creio que não me expliquei bem. Disse que é curioso porque me lembro perfeitamente que, se cheguei a esta situação, foi precisamente por me culparem de ser índio.
—É mau ser índio? — perguntou «Pequena Estrela».
— Se com isso se consegue estar a teu lado, deve ser o mais maravilhoso do mundo.
A índia sentiu que estas palavras lhe perfuravam a
pele, continuavam a penetrar-lhe na carne e chegavam--lhe violentamente ao coração. Nunca lhe tinham dito nada tão bonito.
— Entre os homens brancos — prosseguiu Glen — não entre todos, felizmente, ser índio não é bom, e vocês devem sabê-lo. Mas se ser índio não é bom, ser «apache» é urna coisa que não tem perdão. A mim confundiram--me com um «apache» e quiseram matar-me. Claro que eu não deixei e tive de me livrar de três inimigos, mas um deles conseguiu disparar e se não tivesse sentido tanto medo, creio que não estaria agora a contar-lhes isto.
— E como foste capaz de te meter no deserto?
— Era a minha única salvação.
— Podias ter morrido.
-- Se não o fizesse, também. Vinte homens atrás de um ferido é muita gente, e ter-me-iam apanhado, por fim, e enforcado. Esperei que o deserto lhes metesse respeito e assim. aconteceu.
— Mas se nós não tivéssemos aparecido...
— Eu teria morrido e agora não me seria dado o prazer de chamar irmãos aos dois.
«Pena Azul» gostava da maneira de falar daquele branco. Acima de tudo, era agradecido, e um homem que o é não pode deixar de. ser nobre, valente e leal.
--- «Pena Azul», chefe dos «yumas», sentir-se-á muito feliz por ter um irmão branco. E «Pequena Estrela» também.
— E eu sou o mais feliz dos três. Agora contraí tal dívida, para com os índios, que daqui em diante me sentirei um pouco índio também e comportar-me-ei como se o fosse.
— As tuas palavras agradam-me muito.
— E a vossa generosidade conquisto-me para sempre. Ainda que toda a gente combatesse os índios, eu defendê-los-ia e lutaria sempre a seu lado.
— Obrigado, irmão — disse «Pena Azul».
Durante toda a conversa, «Pequena Estrela» estivera suspensa das palavras de Glen, e embora o jovem, ao falar, se dirigisse aos dois, a índia não deixara de notar certa intensidade nas suas pupilas negras, quando se cravaram nela.
— Não deves falar tanto — disse-lhe ela. --- Teremos tempo disso quando estiveres completamente bom. Tiveste febre durante estes dias e...
— Estes dias? — admirou-se o jovem. -- Desde quando estou aqui?
— Já passaram cinco poentes — respondeu ela.
— Cinco dias? É possível que durante cinco dias não tenha sequer, sabido que existia?
— Tantos como tu dizes — sorriu «Pena Azul». — Mas já passou tudo e o que lá vai não tem nenhuma importância. Esperamos que breve estejas bom de todo, para saíres da tenda e reunires-te connosco. Celebraremos o teu restabelecimento.
— Obrigado, «Pena Azul». Acho que estão a fazer por mim mais do que mereço. Chamo-me Glen Garret e sou do Norte, do Oregão.
O índio levantou-se e disse, quando chegou à porta:
— «Pena Azul» deseja ao seu irmão Glen que descanse e saiu.
«Pequena Estrela» sentiu-se, de súbito, como se não soubesse que fazer.
- - Eu também me vou embora disse, sem olhar para Glen. -- Deves descansar.
-- Um momento, «Pequena Estrela» — chamou o rapaz, soerguendo-se no leito. — Quem olhou por mim durante todo este tempo? Quem me tratou?
A jovem sentiu que o rubor lhe subia às faces e respondeu com voz fraca:
— Eu, ajudada por meu irmão.
— De noite, também?
— Tinhas febre e precisavas dos nossos cuidados.
— Dei-te muito trabalho?
— O que fiz, fi-lo com prazer.
— Queres aproximar-te, «Pequena Estrela». Peço-to.
A jovem acercou-se da cama e parou diante de Glen.
— Aproxima-te, por favor, e dá-me a tua mão.
Sem que a índia compreendesse o que o doente pretendia, ajoelhou-se junto dele e estendeu-lhe a mão direita.
Glen tomou-a entre as suas e esteve a observá-la durante muito tempo. Depois, disse:
— Quero gravar na memória a recordação desta mão à qual, sem dúvida, devo a vida, «Pequena Estrela». Ela soube fazer por mim o que, decerto, mais ninguém saberia.
Sem que a índia o esperasse, Glen levou a mão feminina aos lábios e beijou-a com unção. A índia retirou-a com violência e pôs-se em pé.
— Não te zangues, «Pequena Estrela». Esse beijo na tua mão leva todo o agradecimento e admiração que tu mereces, do homem que nunca se esquecerá de ti.
Com os olhos brilhantes como o fogo, «Pequena Estrela» saiu da tenda a correr.
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