PAS726. É impossível resistir à mulher de vermelho

Estrella e Sidney sentaram-se numa mesa relativamente afastada. Ele encomendou um esplêndido jantar e vinhos da Califórnia. Não tinha muito dinheiro, pois durante aquele ano à procura de Estrella só conseguira economizar uma parte do que lhe pagavam como explorador do Exército, mas decidiu gastar tudo naquela noite. Só queria deixar um pouco para o enterro de Estrella.
Sim, queria fazer-lhe um enterro digno. Ela pareceu adivinhar os seus pensamentos.
—Comprar-me-ás flores — disse num sussurro. — Quero muitas flores vermelhas, Sidney, sobre o meu vestido vermelho.
— Comprar-tas-ei.
Comeram e beberam em silêncio. Ele evitava olhá-la, mas de vez em quando notava sobre a pele o contacto quente dos seus olhos.
Era um contacto que lhe causava prazer e ao mesmo tempo lhe fazia mal.
—Que idade tens, Estrella?
—Vinte e quatro.
—Não és uma criança...
—Bem vês que não.
—Onde nasceste?
—Em Richmond, Virgínia. Mas advirto-te, Sidney, que quantas menos coisas me perguntares, melhor. Não se deve procurar saber nada da mulher que se vai enviar para o caixão.
—Ê para dizer qualquer coisa. Não queres que jantemos absolutamente calados, pois não? Com que então nasceste em Richmond, Virgínia... és por acaso uma aristocrata do Sul?
—Sim.
Sidney ficou surpreendido por aquela resposta, porque foi dada com uma seriedade absoluta.
— Que se passou com a tua família?
—Morreu... Os nortistas mataram-na. Vi o cadáver do meu irmão decompor-se, porque me encerraram vários dias com ele num quarto, enquanto os assaltantes se embebedavam. Depois, quando já não tinha forças, fui tirada dali e ultrajaram-me.
Sidney apertou os lábios, que formaram uma linha espantosamente recta.
—Não é possível.
—Porquê?
—O exército Nortista estava sujeito a uma disciplina. Os seus soldados não violavam as mulheres nem as encerravam com os cadáveres. E se o faziam, eram fuzilados. Eu vi passar pelas armas alguns, a toda a gente sabia ao que estava exposta, se ultrajasse uma mulher. O que me contas é inventado.
—Não, Sidney.
—Não?
—O nosso caso era especial. Demos alojamento a uns sabotadores condenados à morte. Então os nortistas enviaram uma patrulha e castigaram-nos da forma mais cruel.
—De qualquer modo não tinham direito a fazer isso contigo. 'Como se chamava o tipo que comandava essa patrulha?
—Era um capitão chamado Gordon.
— Gordon... Recordá-lo-ei.
—Não te preocupes. Aquilo já passou. Desde então parece-me que passaram séculos.
Sidney bebeu dois copos de vinho seguidos, tentando aturdir-se, mas era impossível. Estava cada vez mais sereno.
Apesar de não lhe convir escutai- a rapariga, precisava saber, saber...
—Por que te ias casar com meu irmão John? Contaste-lhe o que se passara? Disseste-lhe que tinhas sido ultrajada?
—Sim, mas não lhe contei as circunstâncias.
—E ele insistiu em casar-se?
—Eu agradava-lhe muito. Estava enamorado de mim.
— Mas tu não o estavas. Por que ias casar-te?
— Porque queria matá-lo.
Sidney estremeceu. As suas mãos abriram-se e fecharam-se.
—Querias matá-lo?
—Sim.
— Porquê?
—O teu irmão John vivia no Sul e fingia ser um amigo dos confederados, mas na realidade era um dos mais hábeis espiões com que contava o governo de Abraham Lincoln.
— Isso é verdade — disse Sidney. — Eu sabia-o.
— Foi ele quem seguiu passo a passo as atividades da minha família, quem nos denunciou e quem pediu que se enviasse uma patrulha para acabar connosco. Essa patrulha, comandada por Gordon, infiltrou-se em território sulista, muito próximo da frente e já te expliquei o que aconteceu. A John, que no fim da guerra se tornara rico com os transportes do rio Alabama, nunca expliquei a verdade. Mas dei-lhe o meu nome, embora o tivesse - feito compreender com meias palavras que nada tinha que ver com os Kurzon que ele denunciara. Um homem menos transtornado teria suspeitas, mas John nunca as sentiu. Necessitava acreditar em mim porque estava enamorado. Com todas as suas forças queria tornar-me sua. Quando lhe cravei duas balas nas costas, sentiu a maior surpresa da sua vida.
—Por que o fizeste?
—Já to disse: por vingança.
O rosto de Sidney ficou tenso.
—Mentes!
—Porquê?
— Se o tivesses matado por vingança, não te terias incomodado em roubar-lhe vinte mil dólares.
Ela sorriu, inexpressiva e sem o olhar, como se estivessem a cem milhas de distância.
—Vinte mil dólares foi o que John cobrou por ter averiguado onde ficava a base dos sabotadores que todas as noites se infiltravam nas linhas nortistas, assassinando e semeando o terror. Eu não queria que esse dinheiro continuasse em seu poder, nem depois de morta. Mas não acabei. Sabes o que fiz com ele?
—Não me interessa.
— Enviei-o aos hospitais do Sul. Posso prová-lo.
Sidney mordeu o lábio inferior, nervosamente: sabia que ela estava a dizer a verdade.
—Não quero que me expliques mais nada. Nem mais uma palavra, compreendes? Não me importa se és inocente ou culpada, se tinhas os teus motivos para matar John. Tu -assassinaste-o e vais pagar. Jurei que o vingaria.
Ela sussurrou:
—Não te pedi perdão. Só te disse que tenho medo da morte e queria que me eliminasses estando a dormir.
Os dois olharam-se fixamente nos olhos, com uma estranha expressão. As suas feições estavam tensas.
Por isso, porque estavam a olhar um para o outro, não notaram que alguém se aproximava da mesa.
—Que par de tontos. Quer beber um copo comigo, menina.
Sidney levantou a cabeça e olhou para o intruso. Era um tipo alto, forte e algo gordo, muito bem vestido. Devia ter uns trinta anos. A camisa tinha desenhos estampados e as iniciais «J. D.» bordadas. Não havia dúvidas de que se tratava de John Dickensen.
Para reforçar esta impressão viu o encarregado do hotel que, apoiado na porta, tremia espasmodicamente.
—Não vai um copo? — perguntou Dickensen pela segunda vez.
Como Estrella não lhe respondia, agarrou-a por um braço e pô-la em pé, violentamente.
—Tu beberás comigo, rapariga. E esta noite vamos divertir-nos muito.
Sidney, sem se mover, disse:
— Largue-a.
—Largo-a? — o pistoleiro riu-se. —Ninguém em Abilene diria semelhante tolice. Você quer jogar a pele, amigo. Sabe quem eu sou?
—Claro que sim. Leva as iniciais gravadas na coleira e no açaimo. É um cão chamado Dickensen.
O pistoleiro empalideceu.
—Chamou-me cão?
—Sim. E saia daqui antes que me comece a aborrecer deveras e lhe pise o rabo.
O rosto de Dickensen estava completamente branco. Assombrava-o a tranquilidade de Sidney, que não se levantara da mesa e nem sequer o olhava.
—É, a sua rapariga?
—Ainda não lhe pus a marca da minha ganadaria, mas estou a acompanhá-la e isso basta. Quer sair daqui de uma vez para sempre?
—Irei com ela.
Sidney estava enraivecido e com os nervos prestes a rebentar. Desde que começara a falar com Estrella sentia-se violento e necessitava descarregar aquela violência em alguém. De modo que se pôs em pé de um salto, agarrou Dickensen pelas bandas e atirou-o violentamente contra uma das mesas.
Dickensen desfez a mesa ao cair e ia a sacar o revólver, mas Sidney ajudou-o com um pontapé e a arma saltou pelos ares. Ao ver-se desarmado, Dickensen rugiu.
Não lhe serviu de nada.
Sidney destroçou-lhe o nariz com dois terríveis murros, rasgou-lhe a camisa, partiu-lhe a boca com uma palmada de revés, arrancou-lhe as sobrancelhas com dois golpes cruzados e partiu-lhe os dentes com um último murro na boca.
Dickensen, habituado a atuar com o apoio dos seus homens, não pôde resistir àquele aluvião. Simplesmente, teve medo e pôs-se a gritar. Como Sidney, ainda tinha um revólver, tentou desesperadamente chegar até à porta. Sidney esfregou as mãos, dando por concluída a questão depois de castigar brutalmente Dickensen.
Mas de repente este voltou-se. Julgou que o seu inimigo estava distraído. Tentou abraçá-lo e arrancar-lhe o revólver.
Sidney deu pela manobra e foi muito rápido. Espantosamente rápido.
Quando Dickensen chegou junto dele, Sidney já tinha agarrado urna garrafa pelo gargalo, partindo o resto contra uma mesa. As arestas da garrafa brilharam como agudos punhais, e ele cravou-as no rosto do inimigo. Dickensen lançou um horrível grito de dor; enquanto levava as mãos à cara, convertida numa máscara de sangue.
Gritando, caindo e levantando-se, chegou até à porta e desapareceu na noite.
Estrella Kurzon estava mortalmente pálida.
—Bem — sussurrou Sidney—, creio que estragámos o jantar a toda a gente. Desculpem, senhores. Vamos, rapariga.
Dirigiram-se para a escada do hotel, passando. pela porta onde estava o encarregado. Este tremia. como se fossem enforcá-lo.
—Não sabe o que procurou... —balbuciou.—. Ser inimigo de Dickensen é terrível... Adverti-o…
—Cale-se, cobarde!
Subiram ao quarto. Estrella tremia. Toda a sua carne, o seu corpo, palpitava de maneira obcecante.
Quando Sidney fechou a porta, voltou-se para ele.
— Sidney…
— O que há?
— Devíamos ter trazido uma garrafa. Não estou bêbeda.
—Nem eu.
—Sidney...
Os seus lábios estavam entreabertos.
Foi ela que se lançou sobre ele. Foi ela quem o beijou na boca.

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