BIS135.7 A Justiça é dura e não pode abrandar com prantos

O moço do «Chaparral» foi ao seu encontro com maior pesar do que no dia anterior.
— Espera-o uma senhora no seu quarto, juiz — informou.
Bornac vibrou como se fosse submetido a uma descarga. Esperava ver-se por algum tempo livre daquele pesadelo.
No entanto, era preciso enfrentar também isso, pois estava convencido de que a mulher não podia ser outra senão May Zender; que soubera do seu paradeiro e voltava a carga.
Com efeito, era ela.
Vestia como sempre, de escuro, e as suas olheiras tinham aumentado. O seu aspeto patético perturbou o juiz.
— Não me censures por ter vindo — declarou. -- Tinha de vir.
— Disse-te que...
— Bem sei, bem sei. Mas não quer deixar-nos. Está aqui, Mo.
— Aqui? Na cidade?
— Sim. Quer estar certo de que não falaras, de que cumprirás o teu compromisso como ate agora. não sei quem o informou de que isto pode ser um assunto de muito dinheiro.
— Sim…
Bornac mergulhou em profundo mutismo. Sabia que ela espiava os seus gestos e converteu o rosto numa mascara de impassibilidade.
Tinham-no bem preso. Durante alguns minutos, o juiz experimentou a tortura mais espantosa. Compreendia que a sua atitude acarretaria a desgraça mais irreparável para algumas pessoas, inclusivamente para si.
— May, lamento. Desta vez chegámos ao fim.
Bornac contemplou-a em silencio durante segundos e confrangeu-se ao verificar a mudança que se operara nela. Quando a conhecera, era uma mulher formosa, atraente, cheia de vitalidade. Mas a vida tratara-a com muita dureza e por fim amarrara-a a um monstruoso cepo que lhe mordia a came e a desagregava pouco a pouco.
— Neste caso não atuarei como sempre, May — declarou o seu pesar. — Não posso. Não haverá dinheiro. Nem sequer posso garantir-te que consiga salvar a minha pele.
May retrocedeu ate chocar com o lavatório. Tinha os olhos muito abertos e os lábios trémulos.
— Mas, Mo, isso é... Tu sabes o que isso significa!
— Sim, mas não me importo. Procurarei esse homem, May. Falarei com ele e dar-lhe-ei a entender que não pode esperar mais nada, E quase certo que então...
A bailarina correu para o seu lado, com o rosto branco e convulso.
— Nao, não facas isso! Não tens o direito de fazê-lo!
— Porquê? Já o devia ter feito há muito tempo, May. Sempre me impediste. Esta situação é intolerável.
Estava furioso e afastou os braços que a mulher lhe tinha deitado ao pescoço.
— Não compreendes? Somos vitimas de uma fraude
May continuava desvairada e tremia dos pés à cabeça.
— Uma fraude?
Bornac parou diante dela.
— Assim mesmo. Ameaça-nos com uma coisa que não se atreveria a realizar, porque não haveria recanto da terra onde pudesse esconder-se para escapar as consequências do seu ato.
— E meu filho, Mo! E teu também.
Sempre aquele grito que o paralisava, que o levara a prostituir a sua função e a converter-se na personagem mais miserável do Oeste; num juiz subornável.
Conhecera May ao concluir os seus estudos e casara com ela. Mas durou pouco tempo a sua felicidade. A bailarina não estava habituada a uma vida tranquila e um belo dia levantou voo e partiu.
Procurou-a inutilmente, ate que a encontrou anos depois em Flagstaff. Soube que era pai de um menino; mas também soube outras coisas. Aquele fruto da sua came estava em poder do companheiro de May, um tipo repugnante que a obrigava dessa forma a servi-lo nas suas malfeitorias.
 O juiz pôde verificar a veracidade de quanto ela lhe disse, pois falou mesmo com os proprietários da granja onde tivera lugar o nascimento. E começou a sangria. O encontro com a mulher foi um golpe doloroso, mas não o maior. Esse vibraram-lho a seguir, ao considerarem-no a presa ideal para o chantagista
Deu-se o incendio. E a sua primeira concessão vergonhosa a injustiça. Hesitou muito, mas acabou por ceder, para não correr o risco de lhe matarem o filho. A seguir, começou a descer a encosta: cada julgamento uma venda. E a presença da mulher que o seguia para toda a parte, com as suas lagrimas, as suas suplicas.
— Repito que lamento, May. Mas não posso faze nada. Fui cobarde naquela ocasião, não medi bem alcance do que ia realizar, mas não estou disposto prosseguir.
— Matá-lo-á, bem sabes que o matará. O juiz contraiu os maxilares com força e cerrou os punhos.
— Talvez tenhas razão. Mas quem nos garante que algum dia o deixara livre? Juro-te, porem, que pensara muito antes de cometer semelhante crime. Falarei com ele, May. Esta decidido.
Não tinha outro remédio senão o de ser cruel. Bern percebia que o caso era diferente para os dois. Ela não atendia as suas razões, não lhe importavam, apenas queria, considerar o facto de que o filho ia sofrer.
«Mas a Justiça é dura e não pode abrandar-se com prantos».
Viu-a sair, rígida, pálida, com as feições alteradas. Então, Bornac procedeu a um rápido exame dos seus revolveres. Pressentia que teria de utiliza-los dentro em pouco.
Encheu as algibeiras de balas e desceu ao salão, onde comeu um ligeiro almoço.
Terminava-o quando ouviu vozes a porta do estabelecimento. A menção do seu nome pô-lo alerta. Seguido pelo desolado olhar do mogo e pelos comentários de vários comensais, atravessou a sala e transpôs a porta.
Confirmou a sua impressão auditiva. O individuo que gritava era o seu velho conhecido Roy, o pequeno amigo de Sue. Atras dele encontrava-se um homem com o dobro do seu tamanho em comprimento e largura.
— É assim que vocês sabem proceder, malditos cães piolhosos! — vociferava o anão. Estou certo de que foi o juiz quem os mandou deter Sue.
— Cala a boca, Roy — ameaçou-o o seu antagonista, com voz aguda, quase infantil. — E põe-te ao fresco se não queres que...
Mas Roy retesava com temeridade a sua fraca figura. Pulou como se lhe tivessem rebentado aos pés uns petardos e puxou dos revolveres. Mas não pôde tirá-los de todo; o seu corpulento inimigo apontava-lhe já o enorme «Colt» negro que sacara do seu flanco direito.
— Afasta-te, Roy — insistiu. E dá graças por eu não gostar de devorar homenzinhos de manhã cedo.
Roy não parecia resolvido a largar as armas. O juiz deu duas passadas e aproximou-se do alto.
— Que hist6ria é essa de terem prendido Sue? — perguntou.
Roy descontraiu-se e renunciou a servir-se dos revólveres. O seu rosto de macaco arrepanhou-se até agrupar as sardas numa só. O pistoleiro também meteu a arma no coldre e voltou-se para olhar o juiz.
— Não se meta nisto, Bornac.
— Quem é você para decidir essa questão?
— Não finja, juiz! — berrou Roy, que, apesar de tudo, não se dispunha a renunciar a sua belicosidade. — Você está alugado pelo porco do Salinger e sabe muito bem o que fizeram. E quanto a esse monte de esterco que tem ao lado, o seu nome é Durry Bolh, mas conhecem-no mais por «Seis Dedos». Não reparou na sua mão direita?
Com que então «Seis Dedos»! Desde os tempos de Billy o «Miúdo» que não se falava de um «gun-man» que tivesse a seu crédito tantos encontros resolvidos sempre a seu favor.
O juiz observou o singular defeito que lhe valera o apodo.
— Vejo que Salinger adquire para o seu serviço o melhor que existe — comentou. — Mas quem lhe disse que não sou parte na questão?
Durry efetuou um movimento de rotação e plantou--se diante dele, com as pernas ligeiramente entreabertas.
— O senhor é o juiz. Nada mais. E atuará no tribunal.
— Engana-se. Parece-me que o mais digno representante da Justiça popular não tem muito interesse em esclarecer os factos. Eu assumo essa responsabilidade. Ouvi falar, «Seis Dedos», que você não se presta a turvos manejos. Por que procede assim nesta ocasião?
O calmo rosto do «gun-man» não mudou de expressão. Era uma cara lisa, sem barba, onde a única cor provinha dos olhos negros, redondos, de pássaro...
— Eu não entro no assunto. Mas essa garota dos Kunetzky já tentou uma vez impedir que o senhor viesse aqui e que o julgamento se realizasse. Salinger não quer que isso tome a suceder.
— E mandou os seus homens prende-la, hem? Roy interveio de novo. Entretanto, tinham-se aproximado algumas pessoas e do restaurante saíram outras.
No grupo, Bornac distinguiu vários indivíduos que lhe pareceram assalariados de Salinger.
— Esta manhã apresentou-se na quebrada esse porco do Tony Salinger com meia dezena dos seus! E toda a gente sabe de que é capaz esse marrão quando tem uma mulher ao seu alcance.
— Falas demasiado, Roy! E eu não gostaria de obrigar-te a calar.
Apoderara-se do juiz enorme excitação ao ouvir as palavras do pequenote. Sue Kunetzky à mercê de Tony Salinger! Pelo menos, podia estar certo de que a incomodaria, se não tentasse algo pior.
— Isso é verdade, «Seis Dedos»? Tony Salinger está com Sue Kunetzky? E você consentiu semelhante coisa?
O pistoleiro fez um gesto de desgosto. Notava-se que não estava contente com o seu papel, mas que desejava ser fiel ao homem que o contratara.
— Por que pensa que tem de ser necessariamente mau? Se Tony Salinger...
— Isso não serve. Qualquer homem pode castigar uma ofensa, mas é mais importante impedi-la.
Deu um passo para afastar-se. «Seis Dedos» gritou:
— Não se mexa, juiz! Tenho ordem de obriga-lo a esperar que se realize o julgamento.
Aquela era a resposta de Salinger ao seu repto. Bornac fez um gesto que parecia de renúncia.
— Nesse caso...
Mas de súbito girou como um planeta louco e descarregou um furioso murro no queixo do «gun-man». Sentiu tremer o solo. O monólito humano que se lhe opunha separou-se da terra e foi cair algumas jardas mais além, levantando uma nuvem de pó.
Por efeito da pancada, o chapéu e os revólveres caíram-lhe, mas apesar disso logo ergueu a cabeça e dispôs-se a repelir a agressão. Contudo, Bornac não lhe permitiu que fizesse brilhar as suas habilidades.
Assestou-lhe um pontapé com a bota direita e estendeu-o definitivamente no solo.
— Vamos! — ordenou, dirigindo-se a Roy, que presenciara tudo de boca aberta. — Tem o seu cavalo aqui perto?
O pequeno saiu da sua imobilidade e correu por entre, a assistência.
— Siga-me, juiz.
Bornac foi atrás dele. Naquele momento reparou em May que o fitava com curiosidade, confundida entre a, multidão.
Isso esfriou-lhe o entusiasmo, recordando-lhe o problema que tinha de resolver. não podia exteriorizar os:' sentimentos que o tinham feito arder ao imaginar Sue em poder do galanteador rebento dos Salinger.
Porque se procedesse assim, não seria justo. E ele propusera-se sê-lo ate ao limite das suas forças.
— Aqui está «Raw», juiz. não faça caso do nome; pode com os dois.
— Terá de prova-lo.
Saltou para a sela com agilidade e Roy sentou-se na garupa. O cavalo, bicho nervoso como um aspirante à mão de uma princesa, fez uma cabriola e arremeteu contra os que enchiam a calçada.
— Que me esfolem se o entendo, juiz — declarou. Roy. — Sabe que «Seis Dedos» atira uma moeda ao ar, atravessa-a com um tiro e ainda lhe sobra tempo para repor a bala e meter a arma no coldre?
— E você também não sabia isso?
— Bom, sim...
Calou-se porque vertiginosamente produziram-se vários acontecimentos. A uma indicação sua, tinham tomado o caminho do norte. Os homens e as mulheres dispersaram.
Mas houve quem não se conformasse. Um vaqueiro do rancho «Campana» colocou-se no meio da rua e puxou da arma com velocidade extraordinária.
— Quieto, juiz! — preveniu. — Pare!
Bornac esticou as rédeas e o cavalo empinou-se. Ao mesmo tempo, uma cuspidela vermelha partiu do flanco do juiz. O vaqueiro levou a mão ao ombro direito, girou como um pião, acabou por chocar contra um poste e ficou sentado em terra.
— Demónios! Parece que nunca mais se vê livre de sarilhos, juiz.
Bornac não respondeu. Esporeou a montada e esta empreendeu um brioso galope.
Mas ainda não estava livre; ainda lhe seria necessário lutar muito. Todavia, o juiz estava decidido a dar batalha pela Justiça. O seu principal inimigo, sem dúvida, era ele mesmo. Porque ainda que o cérebro quisesse impor-se-lhe, não era a razão que o guiava para a cabana dos Kunetzky, mas outro sentimento que já era inútil negar que se apoderara de si. Estava apaixonado pela loura Sue; tao apaixonado como um doente pode estar pela vida.

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